Sobre a memória: o mito grego e a arte nos dias de hoje
As musas eram entidades mitológicas a quem se atribuíam, na Grécia antiga e no mundo romano, a capacidade de inspirar a criação artística e científica. A arte e a ciência não estavam tão separadas como hoje estão. Na mitologia grega, as musas eram as nove filhas de Mnemósine e Zeus. O templo delas era o Museion, palavra que deu origem à palavra museu, que é o local onde são preservadas as artes e as ciências.
Diz o mito que, após a vitória dos deuses do Olimpo sobre os titãs, foi solicitado a Zeus que ele criasse divindades capazes de cantar essa vitória para que se perpetuasse ad infinitum a glória dos olímpicos. Assim, durante dez noites seguidas, Zeus partilhou o leito com Mnemósine, a deusa da memória, e, um ano depois, ela deu à luz nove filhas, as nove musas.
As nove musas, os significados dos seus nomes e as suas atribuições são os seguintes:
• Calíope - A de bela voz - Eloquência, oratória e poesia épica
• Clio - A que celebra - História
• Erato - Amorosa - Poesia erótica
• Euterpe - Deleite - Música e poesia lírica
• Melpômene - A cantora - Tragédia
• Polímnia - A de muitos hinos - Música e poesia sacras e geometria
• Tália - A que faz brotar flores - Comédia
• Terpsícore - Deleite da dança - Dança e canto
• Urânia - A celestial - Astronomia e astrologia
O poder que se lhes atribuem com frequência é o de trazer à mente dos poetas os acontecimentos que devem relatar. Os poetas mais antigos invocavam-nas com pura sinceridade e, de fato, acreditavam-se por elas inspirados; as musas falavam pelas suas vozes e pelas suas escritas. Na atualidade, tempos materialistas, nada mágicos, tais invocações não passam, no mais das vezes, de mera imitação, os poetas falam por si mesmos, pelos seus egos.
Todos os feitos humanos, por menores que sejam, dos heróis e das pessoas comuns, merecem ser cantados pelas musas, que emprestam as suas vozes aos nossos artistas. A grande sabedoria que está por trás do mito é a de que a melhor forma de preservar as memórias é a arte. Nos dias de hoje, ainda continua sendo a arte, apesar da imensa capacidade de armazenamento de informações da sociedade contemporânea, com seus megacomputadores. Não se trata, obviamente, do ato de simplesmente estocar, guardando em depósitos tangíveis (museus, arquivos e bibliotecas) ou virtuais (meios eletrônicos), mas de preservar as memórias de forma viva, sensível, permitindo acessá-las a qualquer momento, já que o seu acesso não se dá unicamente pela razão, mas pelo conjunto dos nossos sentidos, incluindo entre eles os mais sutis e, até mesmo, desconhecidos, como é o caso da intuição.
Uma prova cabal de que a arte é a melhor forma de memorizar, está na própria Grécia. Os poemas épicos (Ilíada e Odisseia), as muitas comédias e tragédias, além das artes plásticas, com destaque para a escultura, atravessaram os séculos e ainda hoje são referências para a humanidade. A mitologia grega e as tragédias (ambas se misturam, o tempo todo) contribuíram e continuam contribuindo para a compreensão da psique humana, por exemplo. Freud e os freudianos e Jung e os junguianos têm muito a dizer a respeito. Dois exemplos: 1) Robert Johnson, um prolífico discípulo de Jung, faz uma interpretação profunda do mito de Eros e Psiquê, no seu livro She, onde ele busca compreender a psicologia feminina; 2) O complexo de Édipo, compreendido por Freud, está registrado na tragédia Édipo Rei, de Sófocles, uma obra prima sobre a condição humana nos seus múltiplos aspectos, indo muito além da questão da sua sexualidade que, por si só, já é muito complexa.
No passado distante da humanidade, quando a linguagem escrita era para poucos ou mesmo antes da existência da escrita, a poesia, acompanhada pelo canto, era um recurso mnemônico (de memorizar) eficiente para garantir a repetição e a passagem adiante das histórias e lendas dos povos. Os versos, as rimas e as melodias contribuem para a memorização, independente da gravação do texto em papiros, pedras, peles de animais, tabuletas de argila etc.
Eu diria que eles têm um apelo mais forte, basta que nos lembremos das nossas músicas preferidas, que carregamos na memória por toda vida. Os povos antigos criaram essa mistura perfeita entre verso e melodia e ela se propagou pelos quatro ventos. Não precisamos ir à Europa ou Ásia, nem voltar muito no tempo, basta que observemos como os povos indígenas contam as suas histórias e passam as suas tradições, repetindo os cânticos hereditários, muito antigos, ou como as comunidades pobres dos morros do Rio de Janeiro contribuíram e ainda contribuem para o desenvolvimento da música brasileira (lembram-se de Cartola?).
Uma sociedade que não incentiva e não preserva a arte entre os seus membros, acaba, com o tempo, por se empobrecer, no sentido não material da palavra, e, também, por enfraquecer o espírito de cada indivíduo e, por decorrência, de todo o grupo social. A manifestação artística é o ápice da criação humana. Sem a arte a vida se torna uma repetição monótona, mera rotina. A vida não pode se resumir num trabalhar, comer e dormir repetitivos. O trabalho é importante, sem nenhuma dúvida, pois é ele que humaniza o homo sapiens, criando cultura, mas é preciso ir além do trabalho, da simples reprodução material da vida. A arte, a boa arte, é um dos caminhos para a transcendência e todo ser humano anseia por ela.
A boa arte, aquela que vem das musas, precisa ser incentivada. A escola pode ser muito útil neste sentido, mas é preciso mais. As políticas públicas podem dar a sua contribuição também. Hoje, o leque das possibilidades artísticas ampliou-se, indo além da música, da poesia e do teatro, que eram as mais prestigiadas pelas antigas musas: as artes plásticas diversificaram-se; a literatura ganhou novos contornos com as novelas de diversos matizes e as histórias em quadrinhos; surgiram o cinema e a televisão, com suas diversas manifestações híbridas, como no caso das animações; a fotografia tornou-se presente nas vidas das pessoas e nem precisa ser fotógrafo, graças à tecnologia; etc.
Hoje, invocar as musas tem um significado muito profundo, trata-se de um resgate, de um religar-se às coisas do espírito. A humanidade tornou-se uma grande sociedade de consumo, colocando o acesso aos bens materiais, os novos bezerros de ouro, como objetivo central da existência. Assim, um povo que não preserva os seus patrimônios histórico, arquitetônico e cultural, nas suas mais diversas manifestações, "em nome do progresso", como se costuma dizer, como é o caso de boa parte do povo brasileiro, perde a sua melhor forma de transmitir a sua memória e, um povo desmemoriado, perde a sua alma.
Precisamos incentivar a criação artística, o resgate de antigas tradições culturais de caráter popular e trazer à lembrança as nossas lendas e "causos", resgatando o nosso folclore. No folclore a situação é grave. Esquecemo-nos dos nossos seres elementais como o Saci e o Curupira e importamos gnomos e duendes; nada contra eles, mas nós também temos os nossos guardiões da natureza e eles não podem e nem merecem ser esquecidos.
Hoje, poderíamos pedir a Zeus para criar novas musas diante da tamanha diversidade das artes na modernidade. Todavia não é necessário, pois o que realmente importa é compreender o significado profundo da sua invocação. A arte é, em si mesma, a grande manifestação do espírito humano. Ela pode ser, ela o é, um dos caminhos para nos religar ao todo. Invocar as musas é, antes de tudo, um ato de humildade, trata-se de ir além do ego, recebendo e agradecendo a inspiração, que chega conforme o nosso merecimento, conforme o nosso amadurecimento.
PS.: ofereço este artigo a todos os artistas e principalmente àqueles que teimam em produzir a boa arte, lutando contra os mass media, que enxergam a arte como um simples negócio, como algo que precisa "dar ibope".