Eu mimo, tu mimas, ele mimesis!
Poderia começar do final, mas começar do começo é convenção limpinha que muitos não abrem mão. Então podemos começar assim então, mas no singular de meu presente perfeito.
Veja lá: João Ubaldo Ribeiro, baianíssimo de Itaparica, tem um livro fabuloso intitulado: O Sorriso do Lagarto. É um de meus títulos prediletos, mas daqueles que só de ouvir, abro a cara para rir. O desmonte é completo.
Está ali concentrado e irresistivelmente você escuta: o sorriso do lagarto. Nossa... é minha Monalisa Tropical, coisa linda que se regada a uma cerveja e bobó de camarão, faz o Louvre acontecer na sua frente. É magnético.
Mas no Rio de Janeiro, falar de bobó de camarão pode ser visto como estrangeirismo peculiar. Eu sempre fui acostumado a uma polifonia particular. Sou confessadamente um poliglota culinário. Meu paladar é do mundo. Avô mineiro, descendente de maranhenses, com avó goiana, descendente de indígena que não fala bem o português. Do outro lado, avós cariocas descendentes de portugueses. Minha mãe mesmo é de Brasília e meu pai, um goiano do Rio de Janeiro.
Miscelânia. E tudo isso para lhe dizer do sorriso do lagarto e da diversidade com que o cotidiano nos colore as manhãs e manhas da coisa acontecendo, fervilhando no panelaço de gente espremida na cidade.
Já disse noutra crônica que fico perigando ser um canalhinha honestinho, mas o que tenho certeza, é que acabei sendo mimado aos sabores do diferente. Culinária é o de menos, mas como às vezes menos com menos dá mais, eu acho isso muito positivo. E por favor, não me confunda com os Ordem e Progresso franceses.
Até mesmo porque, nessas de ordem, hoje, repito: hoje, não sendo ontem nem amanhã, pela enésima vez pude contemplar não o sorriso do lagarto, mas o xingamento do humano.
Moro numa avenida, mas que a avenida, de verdade, é uma BR. Mas no trecho urbano, chamam de avenida. Resumo: na crise de identidade, ela acaba esquecida tanto por um, quanto por outro. Fica sendo apenas asfalto para quem dirige. Para mim, é a porta de minha casa.
Dividindo a avenida, uma ciclovia monumental foi erguida. Não só a ciclovia! Mas todo um contorno arborizado, sinalizado, com gramas contíguas à faixa de asfalto para as bicicletas.
— Finalmente a turma vai sair da pista agora, aquilo era muito perigoso!
Esse pensamento aí foi meu. Tststststs... mal sabia que, construída, eu fui reparando seu abandono. Era como um corpo estranho em que os transeuntes inflamadamente estavam querendo expulsar. Um dia, nada; dois meses, quase nada; cinco anos e até agora, o final é o mesmo do começo: nada.
Continuam as bicicletas fazendo até mesmo mão dupla no meio da rodovia! Enquanto isso, a ciclovia abandonada. Um pedestre ou outro que usa para corrida, mas fica nisso. Não se vê bicicleta na ciclovia.
Hoje, enquanto saída, dei a partida no carro e quando achei uma brecha para entrar na rodovia, como bom civilizado, do tipo Rousseauzinho, com seta e tudo, vem um homem de bicicleta no canto da rodovia e me adverte de modo enfático sobre o seu estranhamento em me ver com um carro, querendo trafegar na rodovia:
— ÊÊÊÊ!!!! Êêê!!! Vou passar, hein!!!
Olhei para o lado e confusamente sem ainda acreditar que era comigo, devo ter cometido o sincericídio em franzir a testa, meio incrédulo. De relance, olhei a ciclovia: vazia. O carismático ciclista, àquela altura, de cara amarrada, complementa:
— Não gostou não? Vai tomar no ...
E assim, é que lembrei de Erich Auerbach em seu livro sobre a mimesis; a representação da realidade na literatura ocidental. Eu, mimado a crer que as coisas são coisas que possuem um ponto de partida lógica de sentido; que rodovia é uma rodovia e ciclovia é uma ciclovia; fui colocado no meu devido lugar, nessa ficção de título que ainda não encontrei. Eu me senti um selvagem sendo analisado num ensaio de Montaigne.
Dizia Auerbach sobre o Dom Quixote, em seu ensaio contido na referida obra e intitulado de O Príncipe Cansado, que “o conflito entre as concepções ideais de uma época passada e de uma classe que perdeu a sua função, por um lado, e a realidade contemporânea, pelo outro, deveria levar para uma representação problemático-crítica desta última, tanto mais que o doido Dom Quixote é amiúde superior aos seus antagonistas sensatos, graças à sua firmeza ética e ao seu espírito.”
Talvez o que eu tenha realmente experimentado tenha sido uma ficção, em que eu tenha sido o Quixote, com meu velho carro e escudeiro Sancho Pança. Ou talvez, como o próprio Borges também disse em seu texto sobre o Quixote, Magias Parciais do Quixote, que “[...] no sexto capítulo da primeira parte, o padre e o barbeiro passam em revista a biblioteca de dom Quixote; para nosso assombro, um dos livros examinados é a Galateia de Cervantes, e acontece que o barbeiro é amigo dele e não o admira muito, e acrescenta que ele é mais versado em desditas do que em versos, e que seu livro, embora tenha alguma coisa de boa invenção, propõe algo e não conclui nada. O barbeiro, sonho de Cervantes ou forma de um sonho de Cervantes, julga Cervantes…[...]”.
E prossegue, num dos fechamentos mais belos que tenho memória: “Por que nos inquieta que dom Quixote seja leitor do Quixote e Hamlet espectador de Hamlet? Creio ter dado com a causa: tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios.”
E eu aqui, desmimado pela mimesis, após o meu ciclista interlocutor, encontro-me como Cervantes, tendo de ver a mim mesmo na ficção da ciclovia inabitada em que nós, então, agora podemos ser também fictícios. As coisas andam se esfacelando semanticamente.
E já que é para ser uma ficção completa, preferi responder ao ciclista apenas com minha cara diagramada, com um verdadeiro Sorriso do Lagarto. Alguém aí aceita um bobó de camarão mimético?