Caminho para as Índias 2: um longo trajeto até Nova Gokula

Devia ser algum ano do início da década de 80 do século XX e eu embarquei num ônibus da AVA (Auto Viação Americana) na estação rodoviária de Campinas (SP) com destino à cidade de Americana (SP). Assim que encontrei o meu assento, um rapaz "Hare Krishna" passou distribuindo uma revista, procurando possíveis compradores. Entregou-me uma e no seu retorno, que foi bem rápido, pois o veículo estava de saída, resolvi comprá-la. Foi o que fiz e confesso que não me arrependi. Assim que o veículo pôs-se em movimento, eu comecei a folheá-la.

 

A presença de membros da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishina, ouISKCON (International Society for Krishna Consciousness), popularmente conhecida como "Movimento Hare Krishina", na região de Campinas já não era novidade para mim. Contudo, desde que o hippie Narciso apresentou-me e aos meus amigos da UEA (União Estudantil Americanense), em 1974, alguns poucos elementos sobre a religiosidade da Índia e também depois da minha leitura de Sidarta, romance de Hermann Hesse, instalou-se em mim um desejo de conhecer um pouco mais sobre esse país tão diferente (ver meu artigo "Caminho para as Índias 1: o retorno de Narciso", no meu blog (1). Talvez por isso eu tenha comprado rapidamente a revista oferecida pelo devoto de Krishna, sem nenhum questionamento íntimo.

 

Havia várias matérias na revista, mas duas me chamaram a atenção. A primeira reproduzia um diálogo entre um líder importante da ISKCON (depois de muitos anos o seu nome desapareceu da minha memória) e o Arcebispo de Olinda e Recife Dom Helder Câmara. Dom Helder foi um dos fundadores da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e defensor dos direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil. A conversa do líder da ISKCON com o sacerdote católico aconteceu por conta de um agradecimento pessoal a Dom Helder, que intercedeu a favor do Movimento Hare Krishna que, a princípio, incomodou os ditadores de plantão. Sempre é bom lembrar que as ditaduras costumam apresentar duas características marcantes e inseparáveis: ignorância e intolerância. Naqueles tempos, uma religião tão desconhecida e tão diferente, poderia parecer às mentes estreitas dos usurpadores do poder algo bastante subversivo. Tenho uma informação de que um senhor chamado Hridayananda Maharaja encontrou-se com Dom Helder em Recife em janeiro de 1979, mas não sei se é desse encontro que trata o artigo da revista. Como um militante de esquerda, que deu a sua contribuição na luta contra a ditadura, essa matéria de forma alguma passaria em branco para mim.

 

A segunda matéria dizia respeito à comunidade Nova Gokula, que se instalara no município de Pindamonhangaba (SP), na Serra da Mantiqueira. Fiquei interessado pela questão ambiental da reportagem, pois ela falava sobre a recuperação da área devastada da região onde a ISKCON escolheu para montar o seu espaço comunitário. No início dos anos 80 do século passado, eu estava dando os meus primeiros passos, ainda bem curtos, rumo a uma consciência ambiental mais profunda, por isso a matéria da revista não me saiu da memória. Então, eu pensei: "algum dia eu vou conhecer essa tal de Nova Gokula". Depois disso, Nova Gokula apagou-se da minha memória.

 

Muito tempo se passou, era o ano de 1990, eu morava em Campinas e durante alguns meses eu e minha companheira Claudia participamos de um grupo de estudos sobre espiritualidade e tarô na residência de Tereza, uma artista plástica e taróloga de fama na cidade, que foi quem me introduziu ao estudo do tarô e de outras artes oraculares. Semanalmente, nós nos reuníamos e travávamos discussões sobre o tarô, runas e sobre assuntos espirituais diversos. O grupo era composto por cerca de dez pessoas, com alguns participantes bem presentes e com outros mais esporádicos. Também, às vezes, algum convidado aparecia para expor algum assunto específico.

 

Numa dessas vezes, apareceu um convidado de nome Roberto, que era um judeu que se dizia praticante da Wicca (religião neopagã influenciada por crenças pré-cristãs e ligada à natureza). Ele foi convidado para falar sobre carma e, ao fim da sua exposição e dos debates, que foram muito interessantes, disse-nos que passaria o fim de semana em Pindamonhangaba, na Fazenda Nova Gokula, que estava indo com um grupo que ele coordenava e perguntou-nos se não gostaríamos de acompanhá-los. Alguns presentes aceitaram o convite, eu e Claudia entre eles.

 

Então, rumamos a Pindamonhangaba e à Nova Gokula. Quando lá chegamos, fomos alojados em quartos agradáveis, contudo bem espartanos, sem nenhum tipo de luxo, como frigobar, por exemplo. Fizemos passeios pela natureza e notei que ela ainda estava em processo de recuperação. Foi a primeira vez que entrei em contato com a cozinha indiana e, só depois de conhecê-la no seu país de origem, compreendi que ela estava adaptada ao paladar ocidental. Gostei da alimentação de Nova Gokula, achei-a saborosa e nutritiva. Naquela época, na minha casa, já procurávamos manter uma alimentação bem natural, o mais natural possível. Assim, não houve estranhamento.

 

Depois da primeira noite dormida nos alojamentos, acordamos de madrugada, se não me engano devia ser aí pelas quatro horas, para participarmos das cerimônias religiosas. Quando entramos no templo, guirlandas de flores foram penduradas em nossos pescoços e fomos orientados a nos sentarmos, homens e mulheres, separadamente. Isso era novidade para mim, mais tarde confirmaria que era assim na Índia também. Por sua vez os mantras não me pareciam estranhos, pois havia sido introduzido a eles em 1974 pelo hippie Narciso. Encerrada a animada cantoria dos mantras, aconteceu um Satsang (de forma precária, podemos compará-lo com um sermão da Igreja Católica) que, traduzido do sânscrito, significa "Encontro com a Verdade", proferido por um sacerdote. Após o Satsang, fomos ao desjejum. Naquela época, o dia na comunidade começava muito cedo e todos se recolhiam muito cedo à noite também, pelo que eu pude observar.

 

Internamente o templo era muito bonito, incluindo o altar com as divindades hindus. A parte externa estava inconclusa. Pelas fotos atuais eu notei agora que estava bastante incompleta em 1990. Nunca mais voltei à Fazenda Nova Gokula e, em relação à Índia e à cultura indiana, o próximo episódio só acontecerá alguns anos mais tarde, em 1998, que será relatado em um novo artigo, pois não tem nenhuma relação com os fatos relatados neste.

 

(1) http://zildo-gallo.blogspot.com.br/2015/05/caminho-para-as-indias-1-o-retorno-de.html