Shantala e o sebo da Primeiro de Março

Foi assim...

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Na nada pacata Rua Primeiro de Março, centro comercial do Rio, onde o tempo parecia se enredar nos fios elétricos e se acomodar nas frestas das calçadas, enfileiravam-se várias livrarias que, naquele tempo, ofereciam livros usados por preços acessíveis, os famosos sebos. Transitava por ali, com frequência habitual, uma figura que se tornara quase uma parte do cenário cotidiano. Seu nome, pronunciado com doçura por aqueles que a conheciam, era Shantala. Uma senhora de meia-idade, seus cabelos já tingidos de prata e olhos brilhantes de curiosidade.

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Todos os dias, por volta das 11 da manhã, Shantala dava sua entrada na antiga livraria à beira da rua. Uma livraria que mais parecia um santuário, com pilhas de livros empoeirados formando corredores secretos de conhecimento. Ela adentrava esse mundo com passos leves, como quem dançava com as lembranças que as páginas guardavam.

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Seu ritual era sempre o mesmo. Folheava livros antigos de história, tocava nas capas desgastadas de romances clássicos e se demorava nas estantes de poesia, como se cada poema fosse um convite para uma viagem no tempo. Seus olhos percorriam cada título, e era como se ela lesse as histórias nas entrelinhas das palavras.

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Mas havia algo que diferenciava Shantala de outros frequentadores. Ela não se limitava a observar, ela se encantava. Seja com um trecho de poesia que lhe trouxesse uma lágrima silenciosa, seja com a ilustração detalhada de um livro de viagens. Ela absorvia cada história, cada imagem, como se estivesse nutrindo sua alma.

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E então, como uma dança que se transforma em uma despedida, Shantala chegava à parte mais difícil de sua visita diária. Ela começava a fazer orçamentos. Pegava cadernos amarelados, anotava preços em notas imaginárias e meneava a cabeça de forma ponderada. Era nesse momento que o brilho em seus olhos se misturava com uma nuance de melancolia.

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Um dia, o dono da livraria percebeu que havia algo especial que sempre prendia a atenção de Shantala. Era um livro maravilhoso, com imagens do Brasil colonial. Páginas que exalavam cheiro de história e que pareciam transportar os leitores para séculos passados. O dono, sensibilizado pela devoção de Shantala, fez um preço especial para ela, desejando que aquele livro encontrasse um lar onde fosse verdadeiramente apreciado.

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Ao oferecer a Shantala o livro, o dono compartilhou sua esperança de que ele encontrasse um lugar nas mãos dela, ao invés de se perder nos corredores escuros e solitários da livraria. Shantala sorriu, tocada pela gentileza do gesto. Ela segurou o livro com cuidado, acariciando a capa e deslizando os dedos sobre as páginas envelhecidas. Parecia estar segurando não apenas um livro, mas uma janela para um passado que a conectava com suas próprias raízes.

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No entanto, após um instante que parecia eterno, balançou a cabeça com um sorriso triste. Ela agradeceu ao dono, seus olhos brilhando com gratidão, mas disse que não poderia levar o livro naquele momento. Ela explicou que o livro merecia estar com alguém que pudesse explorar suas páginas diariamente, e que, por ora, ela não poderia proporcionar-lhe essa atenção.

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Shantala devolveu o livro cuidadosamente à prateleira, como se estivesse devolvendo um amigo temporariamente ao seu lugar de repouso. Ela deixou a livraria com a mesma graça com que entrara, carregando consigo o encanto do mundo dos livros e a tristeza do que não podia levar consigo.

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E assim continuou a dança silenciosa de Shantala, uma dança que mesclava alegria e tristeza, encantamento e desapego. A Rua Primeiro de Março testemunhou sua rotina, um espetáculo de emoções tecido entre as páginas amareladas e o toque suave de uma alma que encontrava sua eternidade na fugacidade das histórias.

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MMXXIII