Uma Moral de Acostamento
Se está lendo isso aqui, certamente é por gozar de mais uma manhã em sua existência. Bem, assim espero. Caso não, favor não avisar.
Retomando: manhãs têm dessas coisas pré-prontas-definidas-rotineiras. Velho Terê, poeta gente fina, dizia: Homo sum; humani nil a me alienum puto. Não sou lá de traduzir, soa pedante e professoral. Mas, como citei a coisa noutra língua, agora sou responsável a tal: Sou humano, nada do que é humano me é estranho.
Eu digo: eu sou você e tu não me conheces por não se conhecer. Sim! Eis o talvez-sentido disso aqui que escrevo flácido, murchinho, em apatia pós trânsito: empatia. Então, em quê as manhãs estariam ligadas? "Olha lá... mais um título solto. É cada coisa que se lê hoje em dia..." Calma, calma! Venha comigo.
Digo ao humano que habita em você, leitor: tenho mau humor matinal. Quando ouso tomar posse dessa verdade, por muitas vezes lembro do Pessoa: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada”, isso, curiosamente, mesmo o meu interlocutor ostentando nítidos hematomas, e claro: mau humor matinal.
Tudo isso, todos esses devaneios aí, atribuo declaradamente - imputando mesmo - àquele acostamento, nesta manhã. Sim, malfadada manhã, ingratamente saboreada inicialmente no charco do meu mau humor. Explico: dormi pouco, mesmo assim, ressacado, de assalto fui tomado pelo despertador às 06:00h. Precisava ser às 06:00h, afinal, peregrinar em quatro rodas numa cidade, para então acessar a BR 101 por duas horas tem seu preço.
O dilema? O dilema era que mais cedo que isso, não dormiria; mais tarde, estaria atrasado. Pronto, 06:00h. Não toquemos mais nisso e ponto final. Mas pontos são precedidos mais das vezes de vírgula, compassando as verdades que queremos dizer. E nesse ritmo letárgico das vírgulas, é que, pessimamente alimentado com quatro biscoitos de água e sal, acompanhados por um copo de água gelada, adentrei no veículo, e sob a melodia Belchioriana, peguei a estrada.
Meu ponto de partida foi na divisa entre dois municípios e, em tempos de reforma de asfalto, lá estava o Pare e Siga. Quem pega estrada sabe do que digo. Há quem tema mais o Pare e Siga que o diabo. O meu primeiro pensamento foi egoísta mesmo, logo golfei: merda! Porém, nessas de não ser figadal, refleti da iniciativa.
Bom... pelo menos consertando esse asfalto vai ajudar uma galera toda que passa aqui. Ali fundei a religião do Esperismo, na minha congregação dos Esperadores Anônimos. Um mínimo de demonstração de interesse em conscientização pareceu prudente, apesar de que tudo fosse resumido à minha frente a um semelhante igualmente emburrado ostentando um cajado com a plaqueta imperativa: PARE!
E olha que o pedágio de tempo para ingressar na rodovia me custou seis minutos. Apesar da seta à esquerda acionada, a cegueira deliberada dos demais gladiadores do asfalto era voraz e eficaz. Eis que, após minutos, talvez dez, completamente provocado a me irritar, fitei o retrovisor direito, quando pude ver no acostamento, carros passando em alta velocidade; como se numa piscadela, deixavam-me para trás e tomavam seu posto à minha frente.
Eu, ali, lânguido, opaco de reação, abestalhado ri e continuei a observar. Logo os humilhados ultrapassados, numa fagulha de ideia, tomaram seu lugar no acostamento. Uns resistiam mais, outros menos, mas o fluxo era contagiante, e brevemente contaminou os demais. Permaneci na fila, num misto de revolta, indignação, impotência e angústia. Estava sofrendo os efeitos de um utilitarismo da moral de acostamento. Estavam aviltando minha religião recém criada.
Contemplei os não convertidos que se sentiam melhores e mais espertos, vívidos e eficazes, enquanto fui transformado em retardatário; tornando-me retardado por quem era igual a mim, mas não se aceitava nessa posição. Mesmo sem saber quem estava em cada carro, empaticamente, eu estava ali, sim, em todos os carros.
O acostamento existir não era um problema. Era uma solução para problemas, e, sendo franco, maléfico era seu mau uso, e o uso, somos nós. Era, era, era, era... Passado o passado, posso sim dizer que foi um sintoma do que possa ser a infração do amanhã; a propina do hoje; a corrupção; e até mesmo, talvez seja tudo um grande acostamento: ambidestro, livre, atrativo, rápido.
Em seu cinza marginal, vende bem suas facilidades. Estar potente, viril, é maiúsculo! Maravilha grassar pelos imbecis que ousam respeitar as regras. Mais que carros passando, senti uma ideia construída em seus mínimos detalhes, com seus usuários falsários no âmago da necessidade de seu uso.
Soa como um moralismo bolorento? Talvez; porém, tão pronto sinta isso, rogo que perceba que não se trata de moralismo, mas talvez, do que nós mesmos venhamos a ser. O fato de burlar as regras, tomar rumo vangloriando-se do ato é o quê?
Alimentar uma vontade de mandar indistintamente anônima, porém, existente? Refleti que o que somos pode ser muito mais a forma de nossas ações, do que achamos que somos em abstrato. Todos amam o coletivo, mas detestam com plena vontade afiada, uns cinco ou seis que têm cara e nome. Olha, o que chateia não é o todo embolado, é quem vem individualizado.
Da mesma forma, os acostamenteiros, indubitavelmente não temo dizer que, indagados, imediatamente sub-rogariam dizeres de ordem; bravatas. Nossos paladinos da moralidade, tal qual a cegueira da seta, deliberadamente não enxergam isso. Talvez fossem os primeiros a dizer: o sistema é corrupto!! É tudo isso uma merda! Mas quem é o tal sistema? Hum...
Pergunto: alguém já viu comerciais de fraldas? Bebês limpos, cheirosos, risonhos. Algo bem diferente da realidade posta à finalidade das fraldas. Afinal, deveriam estar ali os bebezotes cagados e talvez chorosos. E veja: isso é normal. Mas é o individual. É o que habita nos segredos das mesas com café e pão de sal nas casas de cada um.
Ali no acostamento, era o vermelho pujante que atravessa meus olhos, daquela placa: PARE! Bom ou não, daltônico ou não, o vermelho, ao fim e ao cabo, estará lá, queira eu ou não. A empatia, talvez o antídoto a explicar a noção de próprio desconhecimento pessoal, seria um elemento eficaz para com o outro, revelando-nos a nós mesmos. E quem sabe, para isso exista o todo... para negar o próprio eu.
Reconhecer que a minha manhã está ali para todos, que não é minha, que meu mau humor não pode ser imposto a todos, é elementar para saber que aquilo sou eu. A raiva sentida, sou eu. A fome e a azia, são minhas. Reconhecer que meu mau humor pode estar no outro, porque é humano, é estar na fila. Não no asfalto! Na vida. Na fila do mercado. À espera de um telefone e mensagem de um colega de trabalho. Empatia pode ser o alfinete da bolha, onde as nossas diferenças, verdadeiramente, faz-nos iguais. Não por semelhança! Mas por sermos diferentes, tornando o acostamento pouco atraente.
A busca dessa vitória, da busca de sentido onde não existe, soa narcísicamente como a fábula particular que nos alimenta de tudo, menos de nós mesmos. Se nossas vontades fossem nossas, bastaríamos nós a satisfazê-las. Somos nossos demônios e anjos, perigosamente consumindo vontades alheias por algum tempo, terceirizando culpas a terceiros; falhando, sendo mesquinhos, sendo egoístas, maus mesmo, mas passado o acostamento, como os que saíram da fila e fugiram por lá, somos os primeiros a defender a boa moral! A justeza.
Isso, pensei brevemente, após uma hora de espera, quando finalmente passei a barreira do Pare e Siga. Breve, muito breve, justamente por uma manhã semelhante a essa, serei forçado a confessar coisas ditosas sobre a moral virtual. E já adianto: Deus me livre da bondade dos maus!
Preciso ir, a fila andou. Abraço!