Gatilhos
Nossa mente é um campo minado, muitas vezes em plena guerra onde somos atingidos diuturnamente pelos substratos de suas explosões, em outras em tempos de paz, vivendo de forma harmônica com sua existência, o que não impede de haver uma explosão hora ou outra.
Há situações que nos machucaram tanto que só de pensar nelas nosso corpo trava, sentimos como se tudo fosse ruir a nosso redor, centenas de milhares de micro explosões nos formigando dos pés à cabeça e a inevitável vontade de fugir surge.
Mas fugir para onde se o que dói está dentro de nós?
Pensamos que se não tocarmos no assunto, não revivermos momentos que mesmo diferentes se fazem semelhantes, não revisitarmos lugares, com o tempo iremos esquecer ou ao menos aprender a conviver.
Mas não é assim que funciona, não precisamos tocar no assunto para lembra-lo, o mundo nos lembra a todo instante, não precisamos reviver os momentos, revivemos ao vermos outros passando pelo mesmo calvário, não precisamos revisitar lugares, eles estão dentro de nós e a cada aroma sentido, expressão usada, toque trocado, tonalidade da voz ouvida, voltamos no tempo e uma mina é acionada.
Dá para ouvir o barulho de seu acionamento, é o barulho dos dentes travando, da pele se eriçando, do estômago remoendo, do sangue fervendo nas veias, da pontada nos lóbulos temporais, reações físicas incontroláveis que simplesmente nos controlam.
Minas essas colocadas uma a uma, dia a dia, pouco a pouco, desde que podemos nos lembrar, algumas colocadas por pessoas as quais deveríamos nos espelhar, outras instaladas por estranhos que por uma razão ou outra se tornaram íntimos de nossa existência, algumas por quem nem conhecíamos, mas de quem hoje sabemos mais do que deveríamos.
Por tudo que tudo envolve pensamos não ter solução, tentamos tanto não sentir que sentimos cada vez mais.
Não há como fugir e não há como viver assim!
Sangramos por dentro e com isso sangramos em quem se aproxima de nós, que a cada disparo de nossos gatilhos sofrem o mesmo martírio, pois mesmo tentando nos ajudar a superar, não conseguimos nos entregar.
Por não nos sentirmos capazes de nos curar do que nos aflige, não permitimos que outros se aproximem para que esses não sejam atingidos pelos estilhaços de nossos corações em pedaços.
Como forma de proteção a nós e a quem importa para nós construímos barreiras intransponíveis, muros continentais, tudo para que nosso campo minado não seja perturbado.
Com isso perdemos pessoas, momentos, sentimentos.
Pela nossa condição conseguimos perceber o mundo, de dentro para fora, cuidando de tudo e todos, por sabermos o quanto dói não queremos que aqueles que amamos passem pela mesma dor, mas não percebemos o mundo de fora para dentro, não nos permitimos ser cuidados, não sabemos o que é isso.
Charles Bukowski disse: “Eu tive tantas facas espetadas em mim, que quando me entregam uma flor, eu não consigo entender o que é. Leva tempo.”
A grande questão é: Será que poderemos, com o tempo, nos permitir perceber a diferença entre uma faca e uma flor?
Pelas barreiras criadas acreditamos que tudo que chega a nós é para nos ferir, confundimos cuidado, atenção, carinho, com autoritarismo, arrogância, ignorância.
Confundimos um toque de amor com lascívia.
Confundimos um olhar apaixonado com perversidade.
Confundimos pertencimento com possessão.
Será que somos capazes de nos permitir esse tempo para compreender que nem tudo que se aproxima de nós é para disparar nossos gatilhos?
Que um pedido para se acalmar não é imposição de autoridade, mas de preocupação com nosso estado emocional.
Que a insistência para se agasalhar não é arrogância é cuidado.
Que a atenção recebida não vem com segundas intenções, mas vem com amor.
Os gatilhos do passado sempre serão acionados, como as minas nos afetam hoje que determina se serão disparadas ou desarmadas.
Nos permitir ler as atitudes dos outros com olhares mais amenos, nos permitindo perceber o que vem de fora para dentro de acordo com a intenção do ato, pode ser a chave para que as minas sejam desarmadas e não disparadas.
Freud disse uma vez: “A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor.”
Nos colocamos em um mundo só nosso, de início por necessidade precípua e com o tempo por puro medo do que não conhecemos e do que conhecemos e não queremos mais.
Mas ser só nesse mundo tão árido, estar em alerta o tempo inteiro, prevendo situações, reagindo a ações que sequer entendemos, nos torna ainda mais sós.
Ao Instalar uma ponte ligando o mundo de fora com o que temos dentro, mesmo que pequena, mesmo que estreita, onde podemos observar atentamente a intenção de tudo e todos que entram, perceberemos que algumas, ou até mesmo muitas dessas, entrarão com a pura intenção de trabalhar em conjunto para que mesmo lembrando, mesmo revivendo, revisitando certas situações, elas não mais nos machucarão.
Não estamos sós, não precisamos estar, só precisamos usar de nossa sensibilidade em perceber e atender às necessidades do outro, para perceber o que o outro pode e quer nos oferecer.
Uma flor tem espinhos, mas esses não têm intenção de nos ferir, mas igualmente se proteger, ela pode até nos machucar sem perceber, mas nunca irá nos apunhalar, essa é a diferença e quando conseguirmos compreender a dimensão disso, entenderemos quanto tempo perdemos olhando para dentro do muro sem apreciar o jardim florido e lindo que criou se a nosso redor e ao permitir que esse jardim atravesse a ponte, perceberemos que ele só veio para somar e nos ajudar a ver nosso mundo com mais cor, mais amor, menos sofrimento, menos dor e com isso cada mina acionada por seus espinhos, poderá ser desarmada pelo amor que só uma flor pode nos oferecer.
Nem tudo que nos machuca, fere, nem tudo que não entendemos veio para nos fazer mal, o mal está dentro nós e somos nós os responsáveis por mantê-lo ou demovê-lo.