Socorro! Onde estão os imperfeitos?

Ariano Suassuna dizia que “a tarefa de viver é dura, mas fascinante.” Ariano era um esteta. Eu... que não sou coisa nenhuma, a não ser um debochado que se suja com o chão, que de tempos em tempos tenho que me curvar à porcelana e ver meus próprios dejetos, compartilho da ideia: viver realmente endurece a cada dia, mas não deixa de ser fascinante.

Veja, por exemplo, ontem: estava eu no meu carrinho antigo, ano 2004, sem qualquer luxo. A roda do lado direito deu de dar problema logo pela manhã.

O carro ficou manco; claudicante. As intermitências dos tremeliques enquanto ia rumo à oficina mecânica foram ficando cada vez mais curtas, como se o carro soluçasse.

Não teve jeito; não haveria de ter jeito senão o fim que você já deve ter pensado: PAAA PUMMMM. E assim a roda foi ao chão. Somos por vezes despretensiosos frente ao possível aberto que é a vida. Temos o péssimo hábito, mas péssimo com P maiúsculo, de negar o que seja o futuro, senão suspiros de querência.

E mesmo assim, olha, seja sincero, vamos lá... talvez – olhe, darei o benefício desse advérbio – vivamos mais do lado do futuro, que da fronteira do presente. Outros ficam no passado. De todo modo, hoje, parece que o presente é um infortúnio de passagem.

Eu sei, eu sei... Ariano, carro, roda, tempo... é porque, meu leitor, olhe que ostrinha temos de catar pérola: nada mais concreto e real, que uma roda tenha mostrado a mim a potência do presente. A eterna circularidade e o fetiche do velho-novo; requentado. E que presente de grego.

Minha Odisseia (que vontade de colocar o errado acento agudo); pronto! Licença, tá: Odisséia, começou e terminou ali. O carro torto, caído para a direita. A roda tombada e um carro quase que atravessado na pista.

Corri para sinalizar o trânsito. Minha preocupação ali era precisamente evitar um acidente com outra pessoa qualquer. Um desatento ou afim. Minha grata surpresa veio que, após todas as sinalizações feitas, parti para imaginar o que fazer ali. Olhei, olhei e fui correr para pegar os itens de troca. Pneu, macaco hidráulico, chave-de-roda. Não foi o suficiente. Precisaria de mais um macaco para erguer o carro.

Liguei para meu irmão e enquanto vinha, não havia o que fazer senão observar aquilo tudo à minha frente. A rua que passava tantas vezes, a rua banal, agora era um espaço de cerca de quatrocentros metros, com meio fio irregular de paralelepípedo e de asfalto acidentado. Um cavalo pastava no terreno baldio ao redor e ...

— Moço, tem uma oficina perto daqui!

Uma senhora me disse. Agradeci. Em cinco minutos daquilo tudo, foi a primeira a se dirigir a mim. Logo curiosos apareciam em seus portões perto, com olhares de assuntar. Especulando o ocorrido em suas mentes. Mas ali, no asfalto, eu sabia o que acontecera, mas inescapavelmente atado àquela realidade. Bicicletas. Bicicletas de todos os tipos. Elétricas, pedaladas, azuis, brancas, sozinhas, duplas. Carros, carros, carros, motos, ônibus e caminhão.

Sabe, o que é mais curioso é que quando se está para baixo, o olhar vem de cima. Eu literalmente estava no meio da pista, com o carro sem uma roda e automaticamente eu me tornara invisível. Estava um degrau abaixo de meus semelhantes. Se eu ao menos estivesse devagar, receberia uma buzininha aqui-acolá. Mas quebrado e sem roda? Xiiii... aí não dá. O fluxo parecia, aliás, ter melhorado. Os carros antes de velocidade baixa, ao me ver parado diante do carro emburrado tocando o chão, aceleravam. Talvez evitando ter contato ao meu olhar. Sorri.

Quando já estava resignado de minha insignificância invisível, alguém me vê. Um senhorzinho desses que parece boa praça toma o olhar para mim e dispara, enquanto ri:

– Aí, ó!! Agora quero ver! Hahahahaha!

Eu me pergunto onde estão os fracassados? Onde estão os que se sujam, lambuzam os pés na lama para ir ao escambo diário. Aqueles que têm medo; incertezas. Os que perderam, foram derrotados implacavelmente e sabem disso. Ao meu redor, somente os heróis.

Jurava ter sentido Pessoa bater em meus ombros. Talvez o velho fosse o Pessoa. Olha isso! “Agora quero ver!” Tempo, roda e visão. No meu misticismo cético havia sentido. Naquela rua torta, Poema em Linha Reta:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita

Indesculpavelmente sujo

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, absurdo

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante

Que tenho sofrido enxovalhos e calado

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar

Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

Pra fora da possibilidade do soco

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho

Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia

Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil

Ó príncipes, meus irmãos

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado

Poderão ter sido traídos - mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que venho sido vil, literalmente vil

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza

Argh! Estou farto de semideuses

Argh! Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?”

Ah..... Fernando, Fernando. Fernando Pessoa, não me provoque tanto com esses teus poemas.

É o lapso bastante para que eu me transporte dali com uns segundos que sejam. Meu irmão chega pouco depois e com ele o outro macaco hidráulico.

Roda no lugar, carro em movimento. Nada como a circularidade. Roda ao chão? Quii.... agora isso é passado. Mas já estou indo para a oficina. Os curiosos saem do celular e portões e desapontados, retomam às suas casas. As bicicletas agora diminuem o ritmo. Movo, logo existo. Biiiiiiiiiiiiiii!!!! Primeira buzina! Finalmente agora alguém me vê!

Mas eu ainda me pergunto, sem saber do eterno retorno: ONDE ESTÃO OS IMPERFEITOS?

Simon Lima
Enviado por Simon Lima em 26/08/2023
Reeditado em 26/08/2023
Código do texto: T7871041
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