Essa rua que é minha

- Aê, Professor! Data já tá chegando de novo, tá ligado?

- É mesmo! O que é que a gente vai pintar?

- Quem vai ser o pintor da vez?

- Vai rolar cinema?

- Vai chegar mais tinta?

- Os pincel já tão no toco...

A proximidade da última semana do mês mexia pra valer com os adolescentes do Projeto. O pessoal ficava na maior expectativa. Também, quem não ficaria? Uma semana inteirinha só de pintura!

Na verdade, não era a semana toda só de pintura: era de estudo da vida e obra do pintor de referência, do movimento artístico ao qual pertencia, das inspirações e singularidades que o diferenciavam dos demais, da genialidade, da beleza e das mensagens comunicadas pelos quadros.

Tem livro contando a vida do cara? Bora ler! Tem filme mostrando as artes que o cara fez, nas telas e fora delas? Bora assistir!

Pintar mesmo era só no último dia. Pra botar a mão na massa - na tinta, né? - era fundamental conhecer e apreciar, entender a realidade do artista, da época, dos costumes, da cultura, do mundo em que viveu e retratou.

E a cada mês a molecada tinha a oportunidade de mergulhar num mar de revoluções. Aprenderam a "conversar" com as obras, descobriram que as pinturas iam muito, mas muito além de simples registros de pessoas, paisagens, objetos.

Entenderam os quadros pelo contexto em que foram produzidos e pelo talento de quem "fez a arte".

E foi cada resenha! Trocaram ideia com Van Gogh, Kandinsky, Volpi, Picasso, Monet, Tarsila, Pollock, Renoir, Portinari, Dalí, Braque, Cézanne, Anita Malfati, Miró. Galera de responsa...

Devidamente canibalizada pelos adolescentes. É isso mesmo: canibalização da arte. Nos moldes da Semana de 22. Arte mordida, mastigada, engolida, processada, absorvida, transformada.

Essa era a proposta: incorporar os conceitos dos pintores, fundi-los com os elementos da própria vivência e criar obras originais, únicas, exclusivas. Arte contextualizada!

E aí os horizontes se alargaram dum tanto que o Educador simplesmente não acreditava. Mas tava tudo ali, na real, acontecendo mesmo, melhor que nos melhores sonhos.

Se deu conta que tava fazendo parte dum processo extraordinário, que quase todo mundo acredita ser impossível, inatingível: colocar em prática o ideal de utilizar a arte como instrumento pra formação de cidadãos conscientes de sua própria realidade, com visão crítica do mundo em que vivem, sem medo de partir pra ação pra mudá-lo pra melhor e munidos das ferramentas essenciais pra transformação, o conhecimento e a cultura.

Aí o pintar fluiu naturalmente. Com liberdade, com criatividade, com cor e conteúdo, com alma e coração.

Tudo passa a ser prazeroso quando faz sentido. Fica fácil, simples, mágico, belo: pros Exprimões e Expriminhas, pintar virou um canal pra trazer pra fora tudo que tava guardado na mente e no peito.

E quando foi preciso dar um nome praquilo tudo, o Educador nem precisou queimar fosfato: Oficina de Emoções!

Mas ainda deu uma conferida na etimologia porque ficou meio assim com o termo, mas aí teve a confirmação mais que esperada: vem do latim opificium, derivação de opificis - artesão - mediante a justaposição de opus - obra - e facere - fazer. Literalmente: lugar onde se faz obras!

E fica mais maneiro ainda com a definição do Aurélio: local onde ocorrem transformações!

- Pois é, pessoal! A desse mês vai ser especial! Vontade de abrir o jogo pra geral foi enorme, mas consegui me segurar só pra poder ver a cara de vocês quando eu contar (e também porque é prudente só revelar a surpresa quando se tem certeza de que realmente vai rolar, pra não acabar frustrando as expectativas).

- Anjinhas e Anjinhos, tenho a honra de anunciar que, pela primeira vez na história do CRAS Ormando Nochete, os adolescentes vão pintar em telas de verdade!

- É nada!

- Fala sério, Professor!

- Que da hora, mano!

- Chique demais!

- Que elegante!

- Top demais!

- Que alegria!

Realmente, foi um dos dias de maior alegria que o Educador teve em quase dez anos de caminhada...

E quanta luta pra poder chegar nesse dia. Um sonho realizado!

Enfim chegava a recompensa por tanta persistência, insistência - teimosia mesmo - em continuar em frente, remando, pedindo, reivindicando, brigando...

É que é muito, mas muito complicado fazer coisas diferentes daquilo que sempre se faz, que sempre se repete, que já tá programado desde sempre, que já tá cristalizado, que já tá fossilizado...

É sobre ter força pra não desistir a cada NÃO recebido toda vez que apresentava uma novidade, uma ideia fora da caixinha, uma proposta de trabalho inovadora.

- Investir em arte?

- Não será possível!

- Desperdiçar material de pintura com os adolescentes do Criança Cidadã?

- Não tem recurso disponível!

- O processo de aquisição é muito complexo!

- Vão pintar o quê?

- Vai gastar verba pública com isso?

- Vai sair algum artista dessa turma?

- Vâmo deixar isso pro ano que vem?

- Tela, tinta e pincel pra Secretaria de Assistência Social? Não tâmo comprando nem pra Educação...

- Investir em arte?

Pura bucha, né?

Demorou um tempo pro Educador entender que a máquina funcionava em sentido inverso.

Pra conseguir alguma condição, pra levantar alguma grana, pra poder desenvolver qualquer iniciativa que fosse considerada fora dos padrões, primeiro tinha que fazer e apresentar; e continuar fazendo e mostrando; e fazendo mais e exibindo; trabalhar o convencimento com força...

E foi assim que a Oficina de Emoções teve início: com giz de cera e cartolina, que era o que tinha pro momento mesmo.

As primeiras obras renderam caixas de lápis de cor de qualidade. Depois de muitas outras fornadas, vieram as tintas guache. E finalmente, após quase cinco anos de luta árdua, chegaram as telas. Uma baita conquista!

Ah, não tem como deixar de registrar a importância de um anjo que sempre tava junto, intercedendo lá nas entranhas da Secretaria, fazendo trabalho de formiguinha, formalizando e justificando os pedidos de material: Silvana, a Coordenadora Pedagógica do projeto.

Sempre comprou as ideias, sempre levantou a bandeira, sempre articulou com tudo e com todo mundo pra dar visibilidade às ações, às criações e exposições. Foi essencial pra dar bom do jeito que deu!

- E aí, Professor? Qual vai ser a parada?

- É, o que é que a gente vai pintar nas telas?

- Ah, tem que ser um lance bem diferentão!

- Tem que ser chique!

- E elegante!

- Queridinhas e Queridões, se preparem! Porque o cara é tudo isso junto: diferentão, chique, elegante...

- Meus caros, vocês terão como referência pra suas obras o grande Edgard Degas!

- Eu sei, eu sei! Acho que eu sei! Será que é ele? Acho que é! É ele, é ele sim!

- Tô entendendo nada, Ana Laís!

- É tipo assim, Professor: meu pai, quando faz alguma coisa maneira, tipo assim, acha um vazamento no encanamento, sai mó feliz batendo no peito e falando que é o Degas! Tipo assim, é esse Degas aí mesmo?

- Ele mesmo, Ana Laís! Meu pai também fazia do mesmo jeito! Já faz um bom tempo, mas falar que alguém era o Degas era um enorme elogio! Era simplesmente reconhecer que o cara era o bom, era o melhor naquilo que fazia...

- Eita, e o que é que o maluco fez pra virar o considerado da geral?

- Ah, Perfume! Ele pensou e fez o que ninguém até então tinha pensado e feito. E ainda deu uma invertida monstro numas previsões que eram dadas como inevitáveis pra acontecer.

- Foi quando o universo da pintura tremeu, abalou, viu a casa cair. Uma nova invenção tava chegando pra decretar a extinção das obras registradas em telas, com tintas e pinceis: a temida, a famigerada fotografia era a febre do momento.

- Os pintores entraram em pânico, achando que ninguém mais ia querer retratos e paisagens pintados à mão diante da disponibilidade e da facilidade de flagrar tudo com um equipamento super-hiper-ultra-mega moderno.

- Foi o puro creme do desespero! Todo mundo achando que ia morrer de fome porque não ia mais ter gente interessada em encomendar e comprar quadros.

- E qual foi a fita do Degas que mudou tudo?

- Ele gostava de pintar as bailarinas dançando. Então, assistia aos espetáculos, voltava pro seu ateliê e pintava as bailarinas só com base na memória visual.

- Ah, acho que já copiei!

- Eu também saquei o paranauê do espertão: tirar fotografia das bailarinas no voo pra ter as imagens pra pintar mais firmeza!

- Vocês são feras demais! Acertaram na mosca! Com as fotos, ele tinha possibilidade de captar os movimentos e registrar na tela com o máximo do realismo...

- E, no fim das contas, a pintura tá aí até hoje, firme, forte, inabalável!

- E não vai acabar nunca, Professor!

- É, parece que vocês mesmos são provas disso...

- Mas e aí, ô Degas das lição! Nossos quadros, vâmo fazer como?

- No mesmo naipe do Degas, ué! Fotografando e pintando...

- Tá tirando que vâmo fazer foto de bailarina pra pintar!

- Vâmo não! O tema das fotos será diferente: vocês vão clicar e pintar a casa de vocês!

- Fala sério, nossa casa?

- De cada um! Vâmo sair no rolê pelo bairro, todo mundo junto, parar na frente da casa de cada um, fazer a foto e pintar o quadro! E já tem até nome: Essa rua que é minha!

- Uau! Que louco, Brô!

- Isso mesmo! Bem louco! Igualzinho o Degas!

- Bem mais, né Professor?

- Você que pensa, Witney! Sabia que o Degas foi chamado de doido umas par de vez? Ainda mais quando se juntou com uns outros malucos que tavam pintando de um jeito novo, que sofreu rejeição total na época.

- Ah, então ele era mais um no bando de loucos?

- E não era a torcida de um certo timão aí, não: eram os impressionistas, que também eram chamados fauvistas, feras em francês. Tudo pra rotular os caras como animais irracionais que não sabiam o que tavam fazendo pintando do modo como pintavam: sem padrão, sem contorno, captando só a reflexão da luz...

- E agora, a gente é que vai ser as fera então!

- Com certeza, senhoras e senhores! Se todo mundo topar, vou marcar uma reunião com os pais pra pedir autorização deles pra fotografar as casas de vocês. E aí partiu pra arte!

Com uma ideia na cabeça e uma câmera na mão...

A câmera do Educador. Era 2010. Ainda existia máquina fotográfica. E olha que era digital!

E fizeram!

Fotografaram!

Foi uma semana de andança pela vizinhança. E todo mundo curtiu demais.

- Ô, Professor! Tô com umas ideia aqui: se o bagulho chama "Essa rua que é minha", vou fazer a foto e pintar o pedaço da rua da frente da minha casa, valeu?

- Valeu, Fatal! A obra é sua, o Degas é você...

Fotos reveladas - despesa bancada pelo Educador, porque, pra variar, não tinha como incluir o gasto no orçamento - bora pra etapa da pintura.

- Posso mudar a cor da minha casa?

- Posso pintar o carro de vermelho-ferrari?

- Posso colocar uma árvore na frente da casa?

- Posso pintar o muro da minha casa?

- Meus queridos, as obras são de vocês, vocês são os Degas...

E pintaram!

Sabe quando a gente faz aquele trabalho que faz a gente acreditar que valeu a pena ter vindo pra esse mundo? Aquele que enche a gente de orgulho e satisfação? Aquele que deixa a gente pleno e realizado? Pro Educador, foi esse!

Pensa num negócio que deu desdobramento. Repercutiu. Ultrapassou os limites da área de abrangência do CRAS Nochete.

Tudo por "culpa" da Silvana, que inventou de colocar as obras em exposição na festa de final de ano do Projeto, em que todos os CRAS reuniam as crianças e adolescentes pra apresentações dos resultados, obras e espetáculos das atividades desenvolvidas em cada unidade.

Naquele ano, a confraternização foi no Ceforppe - Centro de Formação Permanente dos Profissionais da Educação. A Secretaria disponibilizou ônibus pra levar os adolescentes pra lá no período da manhã pra montar os quadros nos cavaletes. Ficou top. Os meninos tavam se sentindo. Autoestima lá no espaço!

Mas, nem tudo no mundo são flores e o mundo não é um mar de rosas. No meio da tarde ligaram pro Educador pra informar o desastre.

- Rapaz, veio uma ventania do nada e derrubou todos os quadros! Tá tudo aqui espalhado pelo chão!

Aí o Educador explicou como as pinturas tinham sido feitas e os funcionários acabaram fazendo um mutirão pra reposicionar todas as obras com suas respectivas fotografias.

- Parecia que o quebra-cabeça ia ser bem complicado, mas aí o pessoal começou a associar as pinturas com as fotos e não levou mais que vinte minutos pra montar tudo...

E a exposição foi um sucesso estrondoso!

Tanto que no ano seguinte, graças aos contatinhos da Silvana, veio o convite do Centro Cultural Matarazzo pra uma exposição de 45 dias.

Sensacional!

Foi o puro creme da felicidade!

Mas nem tudo no mundo são flores e a vida definitivamente não é um mar de rosas!

Deu B.O. logo na primeira reunião pra organizar a exposição.

- Olha só, Professor! Temos um pequeno problema pra acomodar os quadros. O espaço destinado pra vocês não comporta todas as obras. Só pra confirmar: são quarenta e cinco, né?

- Isso mesmo!

- Então, se a gente colocar todas, vai ficar muito apertado, vai prejudicar o trânsito das pessoas entre os cavaletes. Então a gente vai ter que rever o número de quadros. Tava pensando em fazer uma seleção daqueles que mais se aproximam de um padrão estético mais palatável. Umas vinte e cinco, no máximo. Você entende, né?

- Entendo sim, perfeitamente! Você tá me dizendo pra escolher as obras pela beleza. Bora então fazer o ranking das vinte e cinco mais bonitas e colocar na vitrine. E os autores das que não forem selecionadas, ficam como?

- Ah, nada que um bom papo não resolva, né Professor?

- Papo? Olha só, meu querido: são quarenta e cinco obras de quarenta e cinco artistas, adolescentes pintores, que andaram juntos pra fazer as fotos das casas deles, que pintaram juntos os quadros a partir das fotos, que vivenciaram todo o processo juntos, do início ao fim. E você me diz pra escolher quem vai pro cavalete e quem não vai? Sinto muito, não vai rolar...

- Então fazemos um sorteio, fica mais democrático...

Aí o Educador chutou o pau da barraca. Com força! Foi pro All-in, com o toba na mão, mas consciente de que tava fazendo o que era certo.

- Absolutamente! Não tem seleção, não tem sorteio! Ou entram todas as obras ou não entra nenhuma! Valeu aí pela atenção! Aquele abraço!

Virou as costas e foi saindo. Com aquela esperança de ouvir aquele "Espera um pouquinho aí, vâmo conversar direito". Que não veio.

Não veio naquela hora. Dois dias depois, recebeu uma ligação.

- Professor! Olha só, fizemos um remanejamento dos eventos que vão ocorrer neste mês e no seguinte e conseguimos disponibilizar uma sala maior, pra poder contemplar todas as obras. Pode dar uma passadinha aqui pra gente acertar os detalhes?

E a exposição estourou! Visitas de escolas públicas e particulares da cidade e região com agenda lotada pra todos os dias. Com fila de espera!

Aí que o pessoal cresceu mesmo! Ficaram famosos!

Tanto que rendeu até coluna nos dois maiores jornais da cidade, O Independente e o Oeste News. O Presidente chegou no Projeto na maior euforia porque a foto da obra dele tava ilustrando a matéria.

- Meu quadro tá no jornal, Professor!

E também rendeu entrevistas.

Pra Rádio Mercantil - inesquecível, o Educador no telefone na sala da Assistente Social e os meninos acompanhando, pelo rádio, na sala ao lado, o papo com a apresentadora Nilza Campos.

E pra TV Divisa, exibida nas duas edições do noticiário regional, pra divulgar a exposição e o trabalho realizado pelo CRAS Nochete.

Quando terminou a exposição, os quadros foram pra casa. De cada artista. Pra embelezar a parede da sala. Pra deixar gravado no tempo um tempo bom demais...

ESSA RUA QUE É MINHA

Um dia desses eu olhei por onde eu ando

Um dia desses eu cliquei a rua que é minha

Um dia desses eu desenhei o teto que ouve meu riso

E pintei o chão que sorve meu pranto

Um dia desses eu me encontrei com minha identidade

E mostrei de onde eu vim e quem eu sou

Eu brinquei de ser artista sem deixar de ser realista

Eu descobri que sou "fauvista", sou "fera contextualista"

Ah, bateu curiosidade de ver as obras?

Tá tudo lá no blog Sextou, Textou!

Só acessar: www.sextoutextou.blogspot.com