"Relatos de uma proletariada"

Faz meia hora que ela está em pé na fila esperando impacientemente o ônibus chegar, enquanto isso, tenta buscar algum tipo de distração no joguinho de celular que acabara de instalar e, se arrependera. Talvez música ajudasse, pensa. E dentro de sua playlist interminável encontra o álbum que tem sido companhia fiel nas últimas semanas: uma banda underground com teor e personalidade e, toda essa besteira que músico autointitulado artista assombrado alcunha para si: o arquétipo marlonbrandista despretensiosamente calculado, integrante de alguma seita da proporção áurea, arauto da perfeição artística, tudo muito humilde, claro!

Mas a música de fato era boa, para seu gosto, e a melodia a jogava para um outro tipo de sentimento que não o da frustração da espera, mas o de transportar sua mente irritadiça para um campo verdejante de sonho cinematográfico...

Assim, só assim ela conseguia de fato aguentar sem desabar em choro! Ultimamente vivia em uma espécie de limbo entre a euforia e apatia total. Vez em quando, uma luz incandescente a acendia por dentro como se ela fosse explodir em milhões de centelhas resplandecentes, no entanto, tudo se apagava sem aviso, era outra coisa encerrada nela mesma, um ponto cinza escuro e espesso.

De supetão, sem qualquer aviso prévio ela desbotava... Quando se entendia anulada, buscava em si e nos outros também algum sentido de existência. Tão desesperado e oco estava seu coração. A terapia meio que ajudava, um pouco. Mas escondia tantas coisinhas estranhas por cada frase arrependida que soltava - porque mentia sobre seu estado de espírito nas sessões espaçadas que ía, não entendia - talvez um tipo de jogo mental onde o único perdedor possível era sempre ela.

Com o acesso fácil que tinha à sua disposição sobre artigos de como a mente e o afeto funciona, devorava insanamente cada partícula de posicionamentos cientificamente embasados que explicassem seu jeito talvez enviesado de enxergar o mundo. Era seu lugar sagrado, depois da música.

Enquanto as pessoas iam e vinham num incessar de passos apressados com olhares firmes e certos de um propósito autoindulgente e porque não dizer, heroico: chegar em seus respectivos lares a tempo do jornal e da janta e, com alguma sorte não sucumbir ao cansaço antes dos capítulos da novela das dez, ela se deslumbrava com um mundo que inventava, ah, eles não faziam ideia do que a atravessava e como isso doía! Nem poderiam mesmo se quisessem. Cada qual com a sua própria cruz, vinagre e uma embrutecida promessa de sonho possível...

Por dentro ela gritava como uma criança que foi esquecida. Estava frágil. Como chegara a esse ponto indissociável das fragmentações turbulentas que a resumiam em uma máquina errática cheia de tantas obrigações, responsabilidades burocracias, regras cotidianas? Qual o “caminho” havia tomado distraída para perder-se assim de si?

Divagando com profunda autopiedade e rancor do mundo, do capitalismo, da mudança climática e da violência urbana e da maldita guerra na Ucrânia, e da corrupção que engendrava com suas garras mesquinhas e nojentas a política dos homens e, meu Deus (!) até as religiões, as igrejinhas nos cafundós onde algum Judas perdeu as botas, essas tais igrejinhas que detinham em si o charme da pureza benevolente, onde qualquer deus bom e misericordioso poderia habitar facilmente dada a irrepreensível honradez com que serviam ao propósito do Cristo pueril, foram também tomadas, assaltadas pela sede maquiavélica de poder pelo poder, salivantes pelos dízimos ofertados por uma massa alienada, ansiosa pela remissão de seus infinitos pecados, esse lugar, antes refúgio sagrado, prometia um lote em um céu onde as chances de salvação eterna poderia ser garantida por um intermediário, um escolhido, o corretor da imobiliária divina: o pastor, um comedor de ovelhinhas!

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