0303: quem tem tempo para um Alô!?

Poderia chamar este texto de ANACRONISMO BUILT TO SUIT OU SUA VIDA NO MÉDOTO FAST FOOD, MESMO. Mas no momento em que ia escrevê-lo, meu telefone tocou. Meu interlocutor? 0303.

Começando pela parte chata, não necessariamente o começo. Entenderam, não é? Enfim, eis a questão: há pouco tempo ficou definido que o código 0303 é de uso exclusivo e obrigatório para atividades de telemarketing ativo, ou seja, aquelas ligações para oferta de produtos ou serviços.

De um tempo para cá, ficou comum o celular TZZZZZZZ TZZZZZZ, tocando e vibrando em curtos intervalos, em razão de diversas ligações diárias de DDDs que desafiam seu conhecimento em geografia, onde quem liga para você, de lugares mais improváveis, é tão improvável quanto. E a coisa não acaba aí.

Quando se pensa encerrada a sucessão de surpresas, vem mais uma: agora quem liga é um robô!

— Alô?!

Pronto! Está fadado a interagir com uma máquina. Fico pensando nos filósofos que negavam a possibilidade de relação entre homem e coisa diante dos nossos tempos. Ou estamos virando também coisas; rotulados, precificados, feitos à encomenda, no prêt-à-porter de cada dia nos dai hoje, ou então as coisas andam virando homens. À nossa imagem e semelhança.

Um sociólogo que gosto consideravelmente, Armin Nassehi, questiona-se quanto a essa maratona de digitalização da vida:

Für welches Problem ist die digitale Technologie eine Lösung? O que, traduzido, seria aproximadamente: para quais problemas a tecnologia digital é uma solução?

E eu repasso a pergunta, pois é exatamente isso.

0,1, 2, 3, 4, 5, 6...

Números representando algo... estou falando ou contando? Qual a sensação experimentada com a linha acima lida? Pixels exalando linguagem e, bem, talvez seja algo trivial agora, mas o estranhamento maroto ainda está, mesmo que letárgico, lááááá no fundo. Será? O sentido virá com o tempo; tempo que se quer mostrar; talvez o tempo desta reflexão.

A noção de tempo que o homem criou enquanto forma de organização vem se tornando dia após dia mais essencial. Opa! Mais uma afirmação. Será? Sempre achei engraçada a capacidade de mudança que o tempo provoca, tinha como ponto de partida, o horário de verão. Metatempo? Tempo sobre o tempo? Achava boa a prática de permitir que muitos saíssem do trabalho ainda com a luz do sol. Mais que isso, via como a mera ficção de se alterar a significação do tempo provocava mudanças concretas no dia a dia.

Comecei a pensar a nível macro. A conclusão foi a surpresa. Indaguei-me: ora, se a mera alteração da noção de uma hora provoca impacto, como então será a alteração do sentido posto sobre o tempo? Tempo enquanto todo. Enquanto existência.

Bem, resposta não encontrei uma sequer. Digo, uma que fosse tragável. As outras foram ficando com vergonha, sumindo em metáforas. Só ficou mesmo a catacrese que vos fala. Quer dizer, que escreve no mundo digital. Mundo digital??

Afinal o que achamos realmente sobre o tempo? Um gato domesticado no pulso, um tigre num rio que não volta ou o ritmo insano que a perspectiva digital sobre o homem está tornando incapaz de solucionar demandas básicas de nossa existência física? Estou escrevendo com um anacronismo tecnológico. Penso em minha mente, pressiono um botão físico do teclado, mas a execução na tela de um computador. Mas ao final, transmite-se a sensação de um papel escrito. Mentira ou significação?

Talvez o tempo enquanto efeito seja assim. Em cada cabeça, uma significação única, presa nas limitações de signo e significante diante do significado. O que será apreendido por outro universo de outra significação única, chamado interlocutor? Mas o tempo será diferente para cada um?

Bem... veja, por exemplo, que o horário de verão que falei já virou passado. Na verdade, ao ler esta exata palavra, o passado antes escrito que era presente, já é passado ao quadrado. Pronto! Agora ao cubo. Não fica tão difícil aceitar que com um esforcinho aqui e ali, captemos que alguém com postura de dono da bola pode estar fracionando a significação do tempo enquanto estrutura e por categorias. E vocês sabem... no Olimpo, até Zeus corre de Chronos.

Você tem o tempo de sua existência, mas alguém diz que você tem o tempo de começar a saber a ler e a escrever; o tempo de ter um bom emprego ou seu próprio negócio; o tempo de trocar seu carro e até mesmo o tempo de preparo e degustação da sua comida. Mas no digital, o passado fratura o presente e parece despir o futuro. Tudo soa como um perene presente. Uma ideia em que não há fim. Não se envelhece, não há sofrimento, não há dívidas... apenas heróis. Pessoa já disse em linha reta o que achava desses aí. Por falar em linha... vive-se parecendo corda bamba.

Mas vamos voltar: vou usar como exemplo, onde lhe interessa mais um pouco: a comida! Veja o fast-food. Termo inglês que se traduzido, já afastaria uma meia dúzia de frequentadores. Falam do fast-food, mas esquecem do cool. Cool que fica trash quando velocidade é a palavra-chave ao que deveria ser sabor.

Atende-se a demanda de muitos e com extrema velocidade. Indago: por exemplo, para a velocidade ser possível, a carne pré-pronta e industrializada-processada-pré-cozida-com-conservantes terá a mesma equivalência de uma carne fresca e moída e temperada na hora do preparo, exclusivamente para aquela refeição?

Como forma de poupar tempo, fazemos equivalentes das coisas e efetivamente deveríamos estar fazendo. E isso é visto com bons olhos pelo consumo. Somos o mito da caverna à cores. Não nos damos conta que estamos pouco a pouco rendendo-nos em prol de um tempo que não é nosso, mas sim de um tempo posto. Um tempo digital. A vida como espetáculo e no final, querendo ou não, você dança. Dança ou está fora.

Os números do início do texto agora podem fazer sentido após ter contato com a integralidade do texto, mas isso só foi possível por aplicar tempo para isso. Não há como se abreviar certas coisas e capturar sua essência. A abreviação de uma coisa é uma não coisa. Queremos muito e mais, e bem rápido, mas tudo tem o seu tempo, tempo que pode ser seu. Queremos tudo de imediato em todos lugares e em troca, temos o digital como solução para um desejo que é impossível ao ser humano. Recebemos sombras e vemos significados.

O tempo existirá ou permitimos que exista? Há o tempo em convívio com o tempo; tempos que podem ser diametralmente opostos, mas concomitantes. O tempo de um oposto ao tempo de outro; tempo em que se pode ser incompreendido. Mas para aquele que o vive, é a sua própria essência. Normal ser incompreendido, não?

Agora, nesse tempo, para se poupar tempo, quem me liga é um robô que finge me entender. Caso eu diga 01010101, binariamente ele fingirá não entender e me falará: "Não entendi. Você pode repetir?" O digital tem dessas coisas. Mas acho que já deu. Minha loucura se passa agora no meu tempo, 13:35h de uma quinta feira de inverno com sol, mesma hora que para alguém, no mesmo tempo de 13:35h de uma quinta com sol, escolheu para ser seu próprio tempo de assistir um filme ou ler este texto que já virou passado.

Talvez o tempo termine por ser uma escolha de nós mesmos, assim como sua escolha final. E aí? Em seu tempo, prefere existir ou ser? Tem sido ou sofrido o tempo? Tempo seu ou de alguém? Está tentando contar um tempo ou está vivendo?

A vida parece ser grande balcão de possibilidades, aliás, qual é o seu pedido?

[...] 7, 8, 9, 10...

Simon Lima
Enviado por Simon Lima em 24/08/2023
Reeditado em 24/08/2023
Código do texto: T7869325
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