Frio na barriga
Estômago embrulhado. Frio na barriga. A dormência na espinha remonta tamanha ansiedade. O cheiro frio do orvalho a tocar a pele nos rememora noitadas festivas de outrora. O corte do pau a pique, as palhas de palmeira no pé do muro e as pessoas assentadas na mureta férrea. O freio do caminhão carregado de ferro e ferrugem, além de outras mil parafernálias dizem tudo: É chegada a hora! Enfim, agosto!
Mesmo com tamanha dificuldade, naquele período mamãe nunca falhava. Quando eu chegava da escola, corria logo para o nosso quarto. Eu dormia com as minhas irmãs. Ao olhar na cama, lá estava ela com aquele cheirinho de coisa nova. Embora simples, era uma roupa macia e linda, pelo menos aos olhos de quem ver. Uma nova armadura. Um novo traje para cortar as vindouras noites frias daquele mês.
Ah, os festejos! Que clima! O mês de agosto sempre foi o mais esperado. Todas aquelas promessas realizadas e nós assistindo a tantas novenas. E os terços? Esses eram eventos com bilhetes garantidos por nossa mãe. Todavia, mesmo com toda essa áurea, o que gostávamos de verdade era daquele clima. A envolvência das maquininhas de sorvete artesanal. Eram várias cores e, embora tendo o mesmo sabor, era o que mais desejávamos. Ao término das novenas, mamãe nos vendava os olhos ao sairmos de uma praça a outra, pois era o local de grande tentação: As barracas de brinquedos! Enfim, mesmo pobres, era muito divertido. Novenas, festas, parque de diversão, pessoas diferentes, tudo era minuciosamente marcado pelo criador com perfeição.
E tudo estava pronto! Já era noite. Como sempre, estávamos preparados! As mesmas palavras com autoridade mamãe repetira: "Meus filhos, não me envergonhem!" Saíamos de casa aos montes como andorinhas no céu em tardes de verão. Adolescentes ávidos por diversão. O palco já estava montado na famosíssima Praça do Real. Todos aguardavam o espetáculo. A atração principal? A banda mais tocada do momento, Companhia do Calypso. Uma áurea perfeita em uma noite perfeita achada por todos. Mas quem poderia dizer que não seria como todos os outros anos?
Chegamos à praça. Algo de estranho acontecera. O tumulto era enorme. Uma avalanche de pessoas de lá para cá desmoronava umas sobre as outras, como ondas a quebrarem no paredão rochoso de uma baía. Ambulantes alvoroçados a lutarem em defesa de suas mercadorias. Homens correm para ver o que é. Mulheres com prole correm para protegerem suas crias, enquanto que as solteiras lutavam para não embaraçarem os cabelos ou derreterem a maquiagem. A energia elétrica oscilava. Era Correria para cá e correria para lá. O mais curioso bradava aos ventos “É tiroteio!" O caos estava instaurado.
Ninguém se segurava naquela altura. Era gente indo e vindo e a muvuca estava armada. Sobrou até para o singelo vendedor de batatinhas. Óleo quente no povo! Pouco policiamento e o mínimo de instruções naquela hora atrapalhavam. "Cadê minha sandália?", diz a pobre mulher que gastou o pouco que tinha nas barracas de calçados. Naquele momento, todos se perguntavam: "O que diabos está acontecendo?"
Com tamanha peripécia, fomos para casa. Não podíamos estar em um ambiente inseguro. Logo, éramos jovens demais para colocarmos nossas vidas em risco. Mamãe até estranhou chegarmos tão cedo. "Não sabemos o que houve", dissemos a ela.
No outro dia, era o assunto da cidade, todos cogitavam as mais peculiares suposições. Entretanto, ficamos chocados quando soubemos do real motivo. Uma Porca! "Uma porca?" indaguei. Fiquei perplexo com aquilo. Como um suíno acabara com tantos planos e propostas planejadas para uma noite excepcional como aquela. Logo, pensei: “Tanto dinheiro investido”.
Depois de resolvido o mistério, a grande festa foi remarcada. Para muitos não foi a mesma coisa, pois não havia mais o gostinho de novidade. Mas apesar de tudo, sendo o mês de agosto o mais esperado pelos cocalenses, esse sempre nos reservou boas e inusitadas surpresas. No mais, de uma coisa sabemos: O frio na barriga sempre existirá.
R. Silva