🔵 Pescando na memória
Inocentemente, eu sabia aonde fui convidado para ir: Laticínios Sardinha. Não, o substantivo não é comum, portanto não se refere ao peixe; o substantivo é próprio, portanto se refere ao sobrenome do proprietário do mercadinho de frios.
A porta rolante de ferro escondia embutidos e frios que temperavam o ambiente. Os produtos pendurados, dependendo do ponto de vista, enfeitavam o armazém. A mistura de cheiros e a disposição dos produtos faziam cada fatia de mortadela, salame, presunto e muçarela parecerem mais saborosas. Bem como, as azeitonas que boiavam numa solução de forte cheiro. Tudo isso dava um odor característico ao armazém Sardinha. Só o cheiro, parecia garantir uma dose satisfatória de sódio.
Eu largava tudo o que estava fazendo, pensando em “saquear” o estabelecimento. Aquele lugar, numa esquina da rua Treze de Maio, representava a real possibilidade de eu parar num hospital com overdose de sódio.
“Mal intencionado”, eu deixava a minha mãe e ía assaltar os tambores de azeitona. Para minha satisfação pouco exigente, tudo permanecia conforme o meu planejamento, de modo que eu não encontrava outra opção e abusava da inimputabilidade reservada às crianças. Sem a assepsia recomendável, perdia a timidez e a conjuntura me obrigava a afundar o braço direito no tambor. Concentrado no saque, eu pescava azeitonas verdes e pretas. Sem saber e sem intenção, talvez eu estivesse refrescando micro-organismos patogênicos.
O método da minha pilhagem não passaria incólume a uma vistoria da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Assim que me vissem esticando o braço no tambor de plástico, os fiscais reuniriam argumentos suficientes para lacrar aquele pequeno comércio de bairro. Tá bom, concordo que a prática não era nada muito salubre, mas eu era apenas uma criança, o que me conferia certa tolerância, ou dó mesmo, porque a miscelânea de cheiros, sobretudo a fragrância de azeitona que vinha do tambor azul e a fome suplantavam a vergonha. De qualquer maneira, como a molecagem era pré-COVID-19, eu continuei vivo.
Esta crônica não tem sentido nenhum, é só um recorte de infância e uma maneira de eu lembrar da minha mãe.