Zara, minha Zara !
Como o mundo é pequeno, não foi surpresa para mim quando duas pessoas que moraram em minha cidade de origem passaram a fazer parte do grupo de mulheres ao qual pertenço. Uma delas é L., que viveu em Arantina quando eu também vivi.Nos conhecemos lá. Apesar de nos cruzarmos pelos morros de Lavras muitas vezes, nosso contato era pouco. Agora, nos encontrando pelo menos uma vez por mês durante as Oficinas de Auto-conhecimento que promovemos, podemos trocar lembranças. Foi em uma dessas reuniões que L. trouxe para mostrar-me um pequeno tesouro: um folheto toscamente impresso com as Reminiscências de Zara de Paula, a minha primeira professora.
Maria Zara de Paula, a Dona Zara, foi minha primeira professora. Eu me lembro dela, o rosto cheio de rugas,os cabelos ondeados repartido de lado, sempre cheirando a sabonete perfumado, sempre na janela da pequena casa no fim da rua principal.O engraçado é que me lembro mais dela ali, naquela janela, do que na sala de aula onde por três anos foi minha professora, em uma classe multi-seriada. Sua casa tinha um portãozinho tosco de madeira que deixava a vista o jardim de margaridas e cravos que exalava um perfume suave se espalhando pela rua. Mais a frente, traçando uma linha diagonal a partir da casa da professora, ficava a casa e a venda do Sr. Prudente. Ele também era velho e sério e eu tinha um pouco de medo dele. Eles eram namorados. Nunca se casaram. Namoraram por tantos anos que eu não duvido que tenham feito bodas de ouro de namoro. Quando eu a via ali, na janela, sempre a espera, eu tecia histórias, que eram tristes e pungentes. Como eu nunca os via juntos, passeando na rua de mãos dadas, como faziam todos os namorados da vila, eu imaginava o portãozinho de madeira sempre aberto para que ele entrasse nas horas mortas da noite. E assim o tempo passava. Fui embora de Arantina e aos poucos perdi o contato com muitos personagens que povoaram a minha infância. Não me lembro de alguém ter me contato que morreram. Mas devem ter morrido, cada qual na sua casa, enterrados também em túmulos separados...Namorando, por toda eternidade. E agora, o livrinho em minhas mãos, desperta saudades adormecidas.
O livro tem um prólogo. Quem o escreve é José de Resende Pena, que a chama de tia. Algumas partes deste prólogo me emocionaram, como quando ele diz que ela nunca cursou uma Universidade mas que graças a ela muitos puderam ter essa oportunidade.Eu sou uma dessas pessoas. Estudando em uma classe multi-seriada, frequentada por alunos das três séries inicais do ensino básico, saíamos de lá, eu e alguns escolhidos pelo destino, quase que diretamente para o ginásio, pulando uma série. Não fiz a quarta série primária. Fui em outubro para o colégio interno e alí fiz os exames para conseguir o diploma. E isso acontecia com quase todos os seus alunos, graças a excelência de seu curso. Eu desconfio que ela só tinha o curso primário, mas apesar disso, nos possibilitava crescer. Lembro-me que, quando voltava para as férias, ela costumava me chamar até a sua casa, para que eu contasse como eram as aulas que eu assistia, no colégio da Cidade. Ela estava sempre aprendendo para poder ensinar e não se importava de buscar conhecimentos se curvando frente a uma aluna que mal saíra dos bancos de sua escola. Era uma educadora.
Reminiscência. Uma menina em uma estrada de chão, cercada por morros, parte em direção ao sol poente dizendo adeus...ou, saúda o sol nascente...não sei. O desenho singelo nos faz ter dúbias interpretações. Assim é a capa do livrinho. Dentro, após o prólogo, textos escritos por ela. Com sua letra inesquecível que copiei tantas vezes até que ela se tornasse minha. E eu fosse aperfeiçoando até que dela pouco restasse. Não sei se tudo é criação dela, não sei se alguma coisa é cópia..Mas não há citações de autor, então presumo que tudo seja dela. Mas dela são certamente os textos sofridos em que desfia as dores de um amor não correspondido. Copiei parte de um texto, assim como ela escreveu...
" Oito horas...o relógio incançável repete com sua voz rouca, as mesmas horas. Nesta casa tudo é silêncio e tristeza. Lá fora cai uma garoa fina e impertinente. O céo nevoento e melancólico não deixa que as estrelas apareçam para tornal -o esplendoroso como nas belas noites de Maio. A lua pálida, muito pálida, de quando em quando espalha sobre a terra a sua luz com mais magnificência. Tudo isso traz-me grandes recordações do meu passado!... Esta mesma lua, quantas vezes já a admirei e contemplei ao lado de quem ainda amo! E hoje...oh que contraste: contemplo-a sozinha com as minhas paixões! Agora é que vejo quanto eu era feliz, amava e tinha a iluzão de ser amada!...Mas hoje?! Oh!...fado cruel...não espero nada mais que a cruel desiluzão!...Mas não, não devo esperar a disiluzão do meu amor, porque quem amo não será tão deshumano assim, elle reconhecerá os sacrifícios e os sofrimentos que tenho passado, sendo ele o culpado ou então a "fatalidade do meu destino, que tem sido immensamente severo para mim". Mas eu o amo muito e farei tudo para vencer as dificuldades e perseguições que tem apresentado e vão apresentando contra mim.(...)."
Bem, o texto não para aqui. Continua por muitas letras bem desenhadas, que formam palavras tristes de alguém que ama e não é correspondido. Eu continuei a ler e aos poucos fui descobrindo o mistério de tanta tristeza. "Ele é noivo", ela revela a certa altura, desesperada. Os textos, que se sucedem, são escritos em várias cidades: São Joaquim, Pinheiros, Bom Jardim. As datas vão de 1929 a 1932, quando eu ainda não existia nem em pensamento. Devia ser uma menina quando escreveu isso. O livro, impresso em Araxá, fala no prólogo, de uma mulher octogenária.Não dá para descobrir a data da impressão, mas há uma dedicatória para L. em 1990. E meu coração, nesta quente noite de dezembro, se confrange...Essa mulher que sofreu por amor fez parte de meu passado...e eu sinto uma ternura imensa pensando nela. Enquanto escrevo o cheiro de margaridas e cravos penetra em minha alma... Zara, minha Zara, com nome de cigana, por quanto tempo ainda serás eterna?