CRÔNICAS CARIOCAS - A JANGADA NA PISCINA

A JANGADA NA PISCINA

Uma névoa insistia em cobrir o Cristo de concreto, talvez para poupá-lo de enxergar as atrocidades da cidade maravilhosa que também insistiam em aparecer cotidianamente... A manhã morna anunciaria novos absurdos em um lugar onde o absurdo é normal. Se não fosse assim, como habitar nestas escarpas e residir em lugares onde pobres mortais ignoram Newton e sua implacável Lei?

Surreal.

Como um quadro de Dali, o Pão de Açúcar surge na improvável moldura da janela de um ônibus sacolejante que me prepara para um destes novos absurdos, com uma pergunta intrigante:

- Com quantos canos se faz uma jangada?

Enquanto refletia em um espelho embaçado pela saudade de casa e pela névoa irritante dos charcos da Barra, descobri que a resposta para esta questão é esta: Seis

O primeiro cano é o do imprevisto, que é difícil de enxergar à distância do tempo, pois já estávamos há várias semanas convivendo com este cano... Como prever o que não está em pauta?

O segundo cano é o improvável, pois jangadas são para águas densas, numa solução à base de halogenetos variados, e não apenas de “croro” como anunciam as caóticas kombis clandestinas e seus maravilhosos produtos de limpeza...

O terceiro é o imponderável, porque não teríamos como pesar o problema da mardita convivência compulsória, nem mesmo invocando Lavoisier, Dalton e Proust.

O quarto, a impaciência, de quem quer estar um passo à frente, mas esqueceu-se que é perneta.

O quinto, a indecisão. Não saberíamos ir indo se ficássemos ficando. O que fazer diante de uma dupla bifurcação em W de Shapiro?

Tem o sexto, mas esse eu esqueci.

Porém, como a teimosia é maior que a prudência, então, as jangadas foram lançadas, uma a uma, neste oceano monohalogênico. Há quem declare o plágio, feito na maior cara-de-pau, mas o velho guerreiro já ensinou que nada se cria, tudo se copia... e todos têm o direito de sonhar e chorar as pitangas verdes da derrota. Venceram as jangadas que souberam eliminar um dos seis canos da discórdia, aquelas que fecharam os olhos ao óbvio e buscaram a realização em um sonho catamarã. Poderia extrair lições deste obstinado desafio?

Sim, as lições foram muitas. Dali (ele de novo) daria boas gargalhadas com o pseudo-surreal de um encontro absurdo de quase quatro dúzias de almas. Descobri, neste encontro, que nem toda brasileira é bunda, nem toda feiticeira é corcunda, apenas pra lembrar Rita. Por falar em feiticeiras, descobri que nem todas as bruxas têm verruga no nariz, algumas até fazem plástica! E que nem sempre quem ri a todo o momento é porque está alegre ou prerroga alegria. Muitas vezes é falta de Valium no sucrilhos matinal.

Mas também encontrei muitos outros que, mesmo com suas jangadas oscilando em uma piscina sem água, ajudaram a insuflar velas retas e assim navegamos juntos, mãos e remos dados. Sêneca já disse que os ventos só servem pra quem sabe pra onde vai: Osório, São Luiz, Salvador, Uberlândia... Há um minuano e um mistral para cada um deles. Para as idas e para as vindas...

À tardinha, a restinga e as lagoas da Barra beiravam um lilás djavaniano. O que eu apenas queria naquele instante era ver o pôr-do-sol, lindo como ele só. Descobri, tardiamente, que Niemeyer, centenário, mereceu a Avenida. Ou será que é o contrário?

O Cristo de concreto, em céu de brigadeiro, sorri para a Lagoa Azul, mas esquece-se de quem nada e se afoga no Rio Branco. Ainda bem que temos James Taylor pra nos lembrar que o Rio é mais do que um “concret Christ”. É mais que todos nós juntos e paradoxalmente, somos maiores que o caos da cidade maravilhosa, em nossas caóticas jangadas sem mar.

Caymmi que nos perdoe.

Marcelo Lopes
Enviado por Marcelo Lopes em 20/12/2007
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