Por que esse velho?
A cidade era pequena, o ano muitos atrás, este autor, à época criança com três ou quatro anos de idade, tinha como refúgio, em noites de medo, a cama dos pais no quarto ao lado. Pela manhã, da janela, era possível ver do fundo do quintal, depois da cerca de bambu, se escancarar o campo verde da fazenda. Pasto infinito povoado por gado a se perder de vista até a casa grande e, provavelmente isto é mais sonho que realidade. O fazendeiro, Seu Zé, tinha uma namorada 40 anos mais nova, de belas curvas e cabelos longos e muito pretos. O murmurinho sobre esse amor ecoava pelos cantos das salas e da cidade, histórias que povoavam o ambiente e o imaginário de criança (...), mas, sobre esse romance, eu conto outra hora.
As ruas eram de terra batida e no inverno subia muita poeira, ambiente bucólico e simples, homens de chapéu de palha com cigarro de fumo de rolo na boca, mulheres de vestido e cabelos compridos, sempre presos sob lenços floridos.
Era comum ouvir uma certa música aguda e intensa inundando a atmosfera, era o som do carro de boi. Carroça rústica com rodas de madeira maciça puxada por imensos bois marruco. Cenário perfeito para misturar realidade e fantasia. Ainda vejo um certo velho de chapéu e vara de marmelo na mão tocando os bois e a carroça correndo a rua. O ruído ainda ecoa nas minhas lembranças, trazendo o passado ao presente.
Havia algo de muito envolvente naquele cenário e, à época, ele me acompanhava até a hora de dormir e se expandia de forma interminável sonho à fora. Então, ao longo da noite, o velho e a música aguda roubavam meu sono e me tocavam para o cama dos meus pais (olhos estatelados de medo). Mas, criador e criatura permaneciam juntos, e a existência de um dependia do outro.
Certa noite em meio a uma noite fria um sonho nada convencional surgiu como uma lambida de luz que escapa pela fresta da janela, aquele velho carroceiro, guiando carro de boi, estava a visitar casa a casa pedindo esmolas. O mais curioso é que a esmola requerida eram crostas secas de catarro, e ele estava na porta de nossa casa. Cara sisuda e enrugada, chapéu velho de palha já bastante surrado, uma capa preta que tocava os joelhos, e um saco já quase repleto de crostas secas. Se hoje sento aqui e me vejo escrevendo esse texto é pelo único fato de não entender qual a serventia de tanto excremento.
Talvez a distância entre o imaginário na cabeça de criança com medo de dormir e a realidade concreta, seja o fato de não existir tal realidade e, o mundo e a vida são apenas o que é possível sonhar. Não tenho respostas e penso que ninguém as tenha. Tal velho com seu saco de ranho viajou até aqui e ainda me cobra respostas, eu não tenho nenhuma para oferecer. Talvez o tempo não exista e fantasmas se esbarram pulando entre as várias dimensões possíveis neste mundo. As angustias e medos, as dúvidas e curiosidades, permanecem intocadas mesmo depois de cinquenta anos. Penso que se tenho alguma motivação para escrever sobre ranho seco é justamente porque a ausência de respostas é o que movimenta o homem. Em geral busca-se respostas de cunho espiritual ou religioso para abrandar a ignorância humana diante do mistério do universo, é sempre alentador. Já a ciência, com a sua presença exatidão, encontra dúvidas a cada resposta alcançada e a conta nunca fecha...O mundo é um mistério.!
É muito curioso, no mínimo estranho, um velho com um saco cheio de excretas de narizes alheios a percorrer tamanho espaço de tempo e ainda hoje estar aqui presente. As suas rugas ainda são as mesmas e o semblante sombrio ainda cobre de medos e dúvidas aquela criança. É intrigante a memória trazer à tona o velho com aquele saco aberto, nas mãos, recebendo aquela esmola, as pessoas metiam o dedo indicador no nariz, cutucavam-no profundamente e, removiam uma pelota de ranho depositando-o no saco. Satisfeito o velho sisudo agradecia e ia para a próxima porta. Qual a finalidade e para onde levaria a sujeira dos narizes dessas pessoas caridosas (?) Por que colher excretas como esmola (?)
Certamente as pessoas com tamanho ato de bondade aliviavam suas consciências e assim, teriam uma boa noite de sono povoada por anjos da guarda, tendo depositado toda a maldade e pecado naquele saco.
Mas, já não sinto tanto medo do velho e do ruído das rodas da carroça. Não importa o medo, de qualquer forma, calejado pelo tempo, o medo sede. Mas ainda não tenho respostas.