O céu azul
- Vê. O céu. Azul. Lindo, não?! Nenhuma nuvem. Nenhuma. Azul. Azul.
- Azul?! O céu está azul?!
- Está. Vê. Olha para cima. Azul. Azul.
- Quem te disse que o céu está azul?
- Quem me disse?! Ora, ninguém me disse. Olhei para cima, e vi o céu, que está azul. Vê. Nenhuma nuvem.
- Qual é a tua profissão?
- Minha profissão?!
- Tua profissão qual é?
- Não entendi o porquê da pergunta. Tu sabes qual é a minha profissão.
- Tu és de qual classe social?
- Classe social?! Sei lá. Eu nunca parei para pensar em tal coisa.
- Tens curso universitário? Concluíste o colegial?
- Não entendo onde queres chegar. Tu sabes qual é a minha formação escolar.
- Por que disseste que o céu está azul?
- Porque está azul. Estivesse amarelo, eu diria que está amarelo.
- Tu não podes dizer que o céu está azul.
- Não?! Por quê?!
- Porque não sabes se está azul.
- Não sei?! Mas... Mas... Vê. Vê. Olha para cima.
- Não posso.
- Não podes?! Por quê?!
- Não consultei as minhas classes, a econômica, a laboral, a...
- De que raio estás a falar?! Se queres saber a cor do céu, basta olhar para o céu.
- Seria tal ato de insanidade.
- O que tu puseste em tua cabeça?! O que te puseram na cabeça?!
- Explico-te: tu, um alienado, sofreste lavagem cerebral; tens a cabeça cheia de idéias que desrespeitam tua natureza de pessoa humana; tu tens de entender que és um ser social, coletivo, que herdaste de teus ancestrais conhecimentos, que estão acumulados no deneá das pessoas humanas, que, tais quais tu, os herdaram dos ancestrais delas; todos os conhecimentos que possuímos são herança de nossos antepassados, são o patrimônio da nossa espécie, estão reunidos no ser do nosso ser, no mais profundo de nosso ser, o ser social, coletivo; assim, herdeiros que somos do que os nossos tataravôs nos legaram, pertencemos à uma ordem de vida coletiva, que pensa coletivamente, e a nossa percepção das coisas do mundo depende da inteligência da coletividade, superior à inteligência individual, pobre, esta, rasteira, e incapaz de apreender as coisas do mundo.
- Estás a me dizer que o que vejo com os olhos que Deus me pôs na cara, o esquerdo à esquerda do nariz, que dobra a esquina cinco segundos antes de lá eu chegar, e o direito à sua direita, não é o que vejo e que deles não posso fazer uso apropriado?!
- Entende: para se perceber, e, mais do que perceber, entender, as coisas do mundo, tens de saber o que as pessoas humanas de teu grupo percebem e entendem.
- Mas... Se o céu está azul! Vê! Azul! Mais azul do que o próprio céu. Azul celeste. Azul.
- Tu erraste ao olhar, antes de consultar os de teu grupo, de tua classe, para o céu, e erraste segunda vez ao concluir que está o céu azul.
- Mas... Macacos me mordam! Pernilongos me piquem! Sucuris me embrulhem! Elefantes me pisoteiem! Morcegos me suguem o sangue! Se está azul o céu, raios! Vê! Azul! Não vê?! Vê! Azul! Ergue a cabeça, e olha o céu. Azul! Azul! Mais azul que o céu de minha boca! Azulsíssimo! Azulsérrimo! Azulstático! Azulíssimo! Azulejo! Azulástico! Ultra azul!
- Vou consultar as minhas classes.
- Quê?! Pra quê?!
- Para saber se posso olhar para o céu.
- E precisas de permissão para ergueres a cabeça e, de olhos abertos, olhares para o céu?!
- Sim. Tenho consciência social. Não sou um individualista egoista. Tenho humildade para, reconhecendo as minhas limitações intelectuais e cognitivas, consultar os sábios de minhas classes, a social, a econômica, a...
- O céu está mega-azul! Azulsissimamente azul. Celestial!
- Um minuto, por gentileza. Ao telefone, quem eu tenho de consultar.
Transcorreram-se longas duas horas.
- Pronto. Encerrada a consulta. Os intelectuais das minhas classes, seres que, todos de impecável formação intelectual, dispensaram-me do estafante, desgastante, trabalho de erguer a cabeça, olhar para o céu, apreender-lhe as características, separar das irrevelantes as relevantes, avaliando-as sob a luz dos conhecimentos científicos acumulados durante gerações de seres humanos, destacar as relevantes, estudá-las, compreendê-las, disseram-me que está o céu vermelho e salpicado de bolinhas amarelas e florezinhas rosas.
- É sério?!
- Sim. Os intelectuais das minhas classes são seres excepcionais, infalíveis. Sabem o que sabem. Jamais me dispenso da obrigação, eu, que tenho responsabilidade social, eu, que sou humilde, eu, que não tenho orgulho individualista, consultar os intelectuais das minhas classes, a econômica, a social, enfim, todas às quais pertenço.
- Legal. Interessante. Mas.. Que diabos! O céu se me apresenta azul.