O ócio criativo
Godar acordou ainda sonolento sem nenhum desejo de abrir os olhos e concentrou todo empenho para retornar ao conforto do sonho que consolava seus pensamentos e recuperava suas energias quando ouviu o barulho vibrante do portão de ferro na casa do vizinho anexo colado à sua parede bater no encaixe da armação impelido por eventuais rajadas de vento que sopravam do lado de fora. O som era fraco e parecia distante, e a vibração metálica suscitava tristeza, causava lembrança de situações dolorosas passadas há muitos anos, o que provocou as suas emoções; por conta disso foi induzido a recuperar os sentidos e logo reparou na precipitação da chuva inesperada; os pingos d’água que caíam sobre o chão de concreto depois de banharem as árvores chacoalhadas pelo vento, emitiam o som de um farfalhar distinto e melancólico para quem foge da baixa temperatura do inverno ainda que debaixo dos panos; definitivamente senhor da própria consciência decidiu se acomodar noutra posição e moveu-se sem sair do lugar, apenas girou o corpo sobre a cama e deitou de lado deixando a mão direita livre para pegar o celular e ver que horas marcava no relógio; constatou que eram 2h30 da madrugada. Enquanto mexia no aparelho ouviu um pé de vento vergastar as folhas e os galhos do cajueiro nos fundos do seu quintal e um frêmito repentino percorreu todo o seu corpo, ao mesmo tempo, apercebeu-se que a sua coberta fugira na troca de posição e expusera suas costas ao ar gelado dentro do quarto. Puxou de volta a manta, cobriu o dorso novamente e abrigou também a cabeça, somente o rosto ficou a descoberto, justo por onde sentia o leve movimento do ar frio do mês de agosto. Em vão se esforçou para retomar o sonho interrompido, convenceu-se de que não seria mais possível, por ora não; a urgência de dormir que francamente lamentava infelizmente passou, sendo assim, aconchegou-se no seu canto segurando o cobertor para esquentar as mãos e se permitiu viajar nos pensamentos que malbaratavam tão valiosas horas de repouso. Tentou se concentrar no silêncio da noite, mas a orquestra do momento, lá fora, prejudicou o seu intento, pois executava uma página sinfônica difícil de ignorar naquele instante; o arranjo harmonioso era maravilhoso e a tão suave melodia agradava de verdade, principalmente aos ouvidos de quem carece de conciliar o sono, bem como aos ouvidos de quem, desperto, simplesmente curtia a serenata de gotas ao tocarem o solo. Decidiu então que o concerto inusitado serviria como pano de fundo, pelo menos, para estimular a viagem que já deveria estar em andamento, não fosse a distração sonora. As fortes lufadas do vento e as vibrações provenientes do portão na casa ao lado aceleraram o ritmo da toada da natureza; o rumor contínuo causado pela chuva intensa fê-lo imaginar que, em vez de se entregar a pensamentos aleatórios, poderia pegar de volta o smartphone e fazer um relato dessa ocasião, como noutras vezes em que fez registro de sonhos excepcionais. Antes, porém, fora acometido por forte impulso nervoso a lhe prevenir de possível alagamento no seu local de descanso; era sua bexiga, que, feito uma caixa d'água prestes a transbordar, ameaçava escoar intempestivamente o excesso de líquido no reservatório abdominal; nem de longe lhe ocorreu suportar o incômodo doloroso daquela urgência e rapidamente afastou a coberta, saltou da cama e correu ligeiro para o banheiro; livre do mal súbito uma sensação de alívio pleno fortaleceu o desejo de descrever tudo que pensou e que se passou durante esse breve intervalo de inquietação da sua mente, não titubeou e logo tomou posse do celular. Agora pronto às 4h55, a transcrição que você acabou de ler. Sem mais o que descrever, recostou-se de lado e adormeceu.