Duas gentes

Ainda criança, percebia nos adultos mais próximos: mãe, irmãos, vizinhos etc., na vila em torno da usina de açúcar onde morava, uma forma mais ou menos específica de se reportarem aos negociantes da feira local que ocorria aos domingos pela manhã. Minha mãe chegava a demonstrar uma espécie de preconceito, talvez. Ela os chamava de matutos. Nas entrelinhas percebia-se que, logicamente, ela mesma não se considerava uma pessoa de hábitos caipiras. Na verdade era dessa forma que se referia a quem vinha do “sertão” que significava a caatinga pernambucana e nordestina em geral. Somente depois de adulto é que pude identificar as diferenças existentes entre esses dois povos: os da zona da mata, ou mais propriamente dito, da zona açucareira e os do “sertão” como se referia minha mãe ao falar deles.

Muitos anos depois tive oportunidade de trabalhar numa empresa em que havia duas pessoas na equipe originárias dessas regiões. Com o passar do tempo e a interação mais próxima fui percebendo certas diferenças entre eles. Inicialmente as atribuía a um sem número de razões que levam as pessoas a serem diferentes, mas uma em particular se distinguia em minha opinião. Enquanto o de origem sertaneja possuía uma veia para negócios, detecção de interesses em outras pessoas, espírito investigativo etc. O de origem canavieira era mais tímido, embora fosse mais culto, comunicava-se menos e tinha um comportamento mais sinceramente subalterno, dando a impressão de preservar valores que, no seu ponto de vista, segurava o seu emprego.

Passei a observar melhor e com o tempo concluí que na zona da mata há uma formação social no inconsciente coletivo de se ser empregado: dos engenhos de açúcar, das usinas, dos donos de plantios... Um guarda-chuva que os abriga e limita sempre como empregados com regras circunscritas a uma cultura antiga ditada por quem tem o poder e visa preservá-lo à todo custo. Uma espécie de caserna condicionadora de pensamentos. Ironicamente eles herdam posturas e orgulhos, entre outros valores, próprios de seus patrões. Na caatinga o que prevalece não é o emprego, mas a ocupação. A subsistência autônoma que obriga o sertanejo a ser provedor de seu sustento sem carteira assinada, sem nenhum vínculo. Nesse habitat as pessoas desenvolvem quantas habilidades lhes rendam meios de viver. Não é à toa que grande parte dos pequenos empórios, mercadinhos, e demais atividades comerciais na capital, no caso, Recife, são de propriedade de “matutos”, ou seja, quase sempre pertencem a alguém que veio da região do semi-árido.

Passados alguns anos, o primeiro tem hoje um caminhão (que é fato raro) e o segundo um mercadinho, de certa forma confirmando as tendências que observei naqueles tempos. Nessa ótica social pude notar a parte da personalidade formada por valores e costumes permeando as índoles com suas influências distintas. Dando o tom do destino dos indivíduos.