Sobre vidros e nostalgia
Sobre vidros e nostalgia...
A loja ficava numa curva de certa rua periférica em São José dos Campos. Cheguei até ela por indicação na internet : eu procurava uma simples reposição de vidro para uma mesinha .Como chamar vidraceiros em casa para esse pequeno serviço não adianta , pois eles não vem, decidi eu mesma ir até lá.
O Sr que me atendeu estava à mesa escrevendo e rodeado por uma parafernália de vidros de todas as espessuras e cores. Meu olhar mais atento denunciou o abandono do lugar, cartas de cobrança não abertas sobre a mesa, muita sujeira nas paredes .Lugar vazio.O Sr prontamente examinou a mesinha e disse que dava para fazer o serviço .Perguntei se poderia ser naquele momento.Ele olhou me, pensou, e disse que sim, mas que eu poderia se quisesse voltar mais tarde para pegar a peça pois , caso chegasse alguém para fazer orçamento, teria que parar tudo para atender outro cliente.
Vi que fazia tudo alí: atendia, cortava vidro, recebia...Como meu tempo é sempre curto, disse- lhe que aguardaria e sentei- me. Ele então me pediu licença, de forma bem cerimoniosa, e disse:" não vá se assustar viu?".Vestiu um guarda- pó muito branco, fechado do pescoço aos pés. Olhou- me de novo e disse:" que tal estou?Pareço um padre, não?".De fato parecia um padre grisalho, beirando seus setenta e tantos anos.Entao colocou um chapéu de palha e de novo perguntou-me:" E agora?Com quem me pareço?".Com o chapelão de palha que lhe cobria quase os olhos , parecia um agricultor de uma plantação de arroz na China. Ele explicou:" Preciso dessa roupa e chapéu para me proteger pois o vidro é cancerígeno ao ser cortado".Colocou também uma máscara velha, mais parecida com uma focinheira e passou a cortar o vidro .Aguardei.
Ele cantarolava, com voz afinadíssima:" Se vc pretende, saber quem eu sou, eu posso lhe dizer". Depois passou para o bolero:" E a ponta de um torturante Band aid, no calcanhar". E foi emendando Cauby Peixoto, Angela Maria , Roberto e Erasmo...E eu , à essa altura fui sentindo um nó na garganta.....Lembrei- me de um filme argentino ("O filho da noiva") cujo pano de fundo da história se dava na Argentina arrasada por um de seus governos neoliberais.Tive vontade de chorar por constatar a similaridade do momento político- econômico em que vivíamos sob governo nazifascista com aquela Argentina de alguns anos atrás arrasada por Macri.
Um misto de tristeza, nostalgia pelo que foi meu país um dia e pelo que se tornou naqueles anos de governo Bolsonaro no poder me invadiu : vivi de 2018 à 2022 num país decadente , sem esperança, e senti a solidão de um homem na terceira idade, trabalhando ainda, com seus mais de setenta anos , para ganhar não mais que R$ 50,00 apenas, talvez o único dinheiro que entraria em caixa naquele dia inteiro de trabalho , naquela vidraçaria isolada, de um bairro de periferia.
Chorei...Chorei...Até ficar com dó de mim...
Marcia Tigani
Código do texto: T6771172
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