BOLERO

Em uma madrugada, a insônia é a mais fiel companheira a dividir a minha cama. Envolvida entre os lençóis de cetim e os travesseiros, ela, um ser invisível ocupa o espaço e, por ciúmes, boicota Morfeu, impedindo que eu adormeça e não sonhe com o meu amor. Coisa da imaginação de quem necessita adormecer para estar junto à mulher amada nem que seja “solamente una vez”.

Ao longe ouço o ruído de uma melodia, lembrando o ritmo de uma antiga canção. Então, de alguns versos consigo me lembrar e, em pensamentos um trecho sou capaz de sussurrar, “é tão calma a noite, a noite é de nós dois, ninguém amou assim, nem há de amar depois...” Vindo lá de fora, invade a janela do meu quarto, transpõem a penumbra exalando uma mescla de algo bolorento com perfume gardênia impregnando o espaço, tornando o ambiente tal qual cabarés iluminados por tons lilás, cenários de amores impossíveis. Tragédias encenadas com enredos de entregas sem limites, de traições, de desilusões, de crimes passionais, todas regadas à destilados “calientes” e sufocante nevoeiro, fumaça de tabaco, acobertando segredos, escondendo frustrações, disfarçando medos.

Para os ouvidos, um som melancólico, com sabor de sofrimento. Desses que ecoam no vácuo se misturando com a poeira solta que baila no ar onde amantes, no compasso de um “bésame mucho”, suplicam caricias, instigando os sentimentos, mesmo daquele que nunca tenha contraído o misterioso vírus chamado amor.

Cada verso uma tristeza, triste e redundante, como para quem perdeu a amada, vítima de uma perfídia, que sequer fora agradecido pelo esforço em ofertar flores, como prova de um grande amor. Notas melancólicas que despertam sensações de um romantismo que já não existe mais, perdido no tempo. Mesmo carente de um afago ou de um beijo, o ritmo invade a alma e enche de infinitos desejos, que viajam pelas entranhas, abarrotado de segredos embrulhados em folhas de papel machê.

Ouvidos apurados, presto bastante atenção ao som, como se fosse um lero-lero, regido por um "El dia que dia que me quieras”. São versos líricos que mexem com os sentimentos, mesmo daquele que nunca teve a felicidade de ter sido amado, ou que sequer amou um dia. Em contrapartida, não experimentou o sabor amargo do sofrer de amor.

Mas, ao ouvir a canção, é possível que qualquer ser humano, que tenha ou não sofrido pela dor do amor, se renda às histórias de infortúnios contidas em um bolero. Impossível controlar a emoção e conter um mínimo de gotículas de um pranto tênue a umedecer os olhos de alguém por mais forte que seja.

Sentindo um frio em minha alma, com a cabeça rodando, não sei por quantas vezes a insônia rondou as minhas noites vazias. Demoro a adormecer e, assim que adormeço, sonho com ela, mas no sonho sempre que pergunto o quê, quando, como e por onde, ela me responde, “quizás”, “quizás”, “quizás”. As noites passam, os sonhos se vão, eu me desesperando e ela respondendo talvez, talvez, talvez. Então pergunto até quando? Até quando? Em vão, não tenho resposta.

Sonharia tudo outra vez se preciso fosse meu amor, na sede de sentir seu corpo coladinho ao meu. Então voltaria a adormecer e sonharia a noite inteira como já sonhei, pois, a orquestra nos espera nesse imenso salão da imaginação, por favor! Quero as suas mãos, mais uma vez, um sonho recomeçar.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 09/08/2023
Reeditado em 09/08/2023
Código do texto: T7857407
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