COISAS DO VALE

COISAS DO VALE

Numa das minhas muitas "andanças", sem me dar conta, quase anoiteço num pedaço de paraíso um tanto distante de onde moro.

Cenários deslumbrantes, muitas fotos, enfim...

Tudo de que me lembro é das corujinhas buraqueiras, alheias a tudo, postadas nos palanques da cerca aramada,tecendo quietudes ao final do dia.

Daquela tarde que se agigantava e elas,as corujas, profetizando uma grande noitada.

Em algum lugar, uma sanfona rompia silêncios.

A canção voejava e vinha de longe ,muito longe, maculando levemente a pureza do tempo.

[ Lamuriante ,insistente, apaixonada...]

Carregava um certo encantamento, apesar da sua quase dolência.

Os acordes soavam feito uma súplica à mulher amada como a implorar que...

Retornasse.

Por instantes revestido da ousadia daqueles que pensam saber das coisas, fui criando um cenário para o incógnito sanfoneiro da tarde:

Então, veio-me à mente...

Uma casinha modesta plantada na imensidão verde do campo.Paredes tingidas de um amarelo - desbotado e janelas em vermelho.

Pés de couve no quintal, alecrim ao lado direito da escada, fumaça em caracóis borrando o pano de fundo pincelado de um céu de caqui.

[ Um galo cantando na laranjeira,na hora de se recolher ]

Tapete de retalhos sobre o assoalho besuntado de cera vermelha , um bichano reflexivo na soleira da porta e na cadeira de palha...

Êle !

O sanfoneiro.

Enfiado numa elegância cabocla ,cheirando à loção de barba. Botas polidas, calça com vinco, camisa de um xadrez discreto , lenço no pescoço e chapéu com barbicacho.

Seus dedos vão tateando o teclado da “cordiona vermelha" , com o carinho de quem tem nos braços a mulher amada.

Mas, ao que tudo indica,ele está só.Atino com meus botões.

À pouca distância da casa, um alazão pasta serenamente. As mordidas na grama e o compasso das batidas do cincerro, parecem obedecer a cadencia dolente dos acordes na varanda da casa amarela.

Imagens !...Imagens...

Saio do transe e percebo a mansidão da estrada onde estou, pedindo passagem entre as araucárias já escurecidas pelo fim do dia.

E esta mansidão arrasta-se na placidez da boca da noite como a acudir o choro da sanfona perdida num ponto qualquer daquela espécie de aldeia encolhida entre uma e outra árvore nativa.

Compadecido, o céu entrega os pontos :

Rasga-se ! Dilacera-se em ouro puro.

E aquele lamento desafinado, uivando paixões, atira-se nos braços da noite.

Num céu enegrecido, estrelas precoces confabulam entre si:

[ Coisas do vale !...Coisas do vale !...]

Penso uma vez mais com meus botões:

Eu já devia estar em casa.

Ao que eles me respondem:

-"Tocando sanfona pra tua polaca, véio !

Caso soubesse tocar algum instrumento "

Dou-me por vencido, sigo adiante.

IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 09/08/2023
Código do texto: T7857289
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