Histórias que gosto de contar – Os amigos de meu pai
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 8 de agosto de 2023
Final da década de 1950 e início de 1960, era costume parte da população de Fortaleza receber amigos, vizinhos e parentes para conversar nas calçadas. Era um prosear quase diário, tinha início quando o sol se preparava para derramar, sobre a cidade sua sombra, amenizando o calor reinante. Era a hora da noite despertar, dando oportunidade às luzes da cidade embelezarem os caminhos, e as cadeiras ocuparem as frentes das casas, para receberem os que ali chegavam, para se refrescarem e trocarem ideias. Um costume salutar que amenizava o cansaço das tarefas diárias, e estreitava a amizade entre os participantes daqueles encontros.
Durante minha pré-adolescência e adolescência meus pais tinham o hábito de receber alguns amigos e vizinhos, na calçada de casa. Ele trabalhava no centro da cidade e minha mãe cuidava dos filhos e das atividades domésticas. Nem todos iam à escola por causa da idade. Os mais velhos frequentavam um colégio perto de casa, iam todos a pé. À tarde, depois de toda a casa arrumada, minha mãe ficava aguardando a chegada de meu pai, depois entre 17h30 e 18 horas. Ele jantava e se dirigia para a calçada, já levando sua cadeira de balanço. Sentava-se e ficava esperando os amigos para o bate-papo diário.
Morávamos numa rua onde predominavam casas geminadas, ou gêmeas, isto é, tipo de construção onde as casas permanecem coladas umas às outras. Era uma casa estreita e comprida, mas que acomodava muito bem a nossa família. Não tínhamos jardim e a calçada era usada com uma extensão da casa, que facilitava a acomodação dos que faziam parte do grupo de amigos do meu pai. Determinada época do ano as noites eram sempre agradáveis.
Um a um, iam chegando, e nós, minha irmã, eu e meu irmão, éramos os responsáveis de trazer as cadeiras e colocar à disposição dos visitantes. O primeiro era o seu Furtado, um senhor de mais idade que meu pai, talvez 10 anos mais, que morava em uma bela e confortável casa, com jardins ao lado e defronte a ela, muito diferente da nossa. Ficava uns 50 metros adiante das casas geminadas, do lado direito da rua. Suas conversas eram sempre de gozação entre eles. Falavam sempre sobre velhice. Ele não ficava zangado, as piadas ditas eram sempre leves e sem ofensas. Seu Furtado quase não falava, era tímido e desconfiado, mas ria bastante das piadas de meu pai, que, na verdade não tinham muita graça. Conhecido como “mão de vaca”, “mão fechada”, avarento, o velho Furtado era muito apegado ao dinheiro.
Aos poucos outros iam chegando, os assuntos mudavam, só não falavam de política e religião. Com exceção desses dois temas, os componentes desse grupo conversavam acerca de tudo. Até uma fofoquinha, era ventilada, porque ninguém resistia ficar sentado, vendo, ouvindo e não puxar um assunto da vida alheia. Os presentes não eram brindados com esse assunto, fofoca.
Vinha gente até de outras ruas. Os que ali se reuniam tinham como rotina esses encontros diários. Eram pessoas que sentiam prazer em fazer parte desse grupo e demonstravam cordialidade, vizinhos afáveis e sinceros. Alguns não tinham companhia em casa, filhos já casados que não apareciam em casa dos pais, dois viúvos e uma separada do marido. Fazer parte desse grupo, sem mesmo ter isso como propósito, demonstrava o interesse de pessoas em participar de uma atividade prazerosa, fazendo-os interagir cada vez mais.
O interessante é que esse costume, de se colocar cadeiras nas calçadas e passar horas agradáveis conversando com vizinhos, amigos e conhecidos, em Fortaleza, tem começo remoto, quando avós e pais contavam histórias para as crianças. Lendas, histórias de viagens fictícias e histórias assustadoras que deixavam as crianças apavoradas. Mesmo assim, foi um costume que perdurou por muito tempo, até, talvez, quando as ruas foram ficando sem muita proteção.
Voltando ao Sr. Furtado, o amigo que meu pai dizia ser um “amigo verdadeiro”, era o primeiro a se preparar para voltar à sua casa. Arrumava-se todo, levantava-se e ficava ali até meu pai avisar à minha mãe que já estava na hora de servir a merenda. Ela se levantava, ia até a geladeira, pegava o que tinha de merenda e servia para todos ali presentes. Após esse ato, pegava os pratinhos e levava para a cozinha. Geralmente isso acontecia depois das 22 horas. Poucos minutos depois de seu Furtado se despedir, os outros saiam, deixando o nosso pai sozinho na calçada, ainda em sua cadeira de balanço. Era a hora de recolher as cadeiras, colocá-las nos seus devidos lugares, meu pai fechar a porta de casa e deitar-se para dormir. Em nenhum momento do dia claro, o senhor Furtado era visto, ficava enfurnado em casa, possivelmente contando o quanto havia economizado naquele dia. Todos conheciam da sua avareza, mas ninguém o perturbava por isso. Por sua vez, ele nem desconfiava, continuava assim. Ao lado de sua casa, chegou a construir outra mansão, que alugava, mas não por muito tempo. Nenhum inquilino o aguentava por muito tempo, em razão de suas cobranças quase diárias.