UM CERTO NATAL

Saímos a esmo, sem nenhum objetivo definido, nada determinado a não ser passar o tempo e que passasse assim, despercebido. Ausente. Fogos pipocavam nos céus, luzes coloridas, estrondos de fogos de artifício, bombas, rojões. Mão na mão. A minha trêmula, suada. A dela fria, burocrática. Fingíamos seguir a rotina do caminhar a dois, noturno, sem quaisquer ambições festivas. Descemos a praça, caminhamos lado a lado, calados, ou comentando qualquer coisa inócua. Sem sentido. Seguíamos o senso comum dos que não participam da vida, do mundo, do prazer em estar vivo. Pensávamos na morte. Rasteira, selvagem, maquiavélica. Tinha nos tirado o direito de sermos felizes, como todos. Temíamos mergulhar na insensatez, na insanidade. Temíamos mais ainda aceitar que não teríamos Natal, como tantos outros. Tomamos o carro, liguei o rádio, dedos involuntários, negligentes da dor. Mensagens de amor, paz, esperança. Canções brejeiras, populares, alegres. Alegria. Para quem, como nós, só partilhava da dor. Da dor de vê-lo dissipando a vida frágil, numa fuga quase etérea de nossa presença. Fuga covarde e matreira. Sabedor da hora, do momento, oportunizando a despedida que não queríamos. Que não pedimos. Vimos os cabelos brancos, a fronte pálida, amarelada, o segredo da vida se esvaindo definitivo. O olhar aguado, desvanescendo-se na luz, tão claro, tão límpido e suave. Atingindo nossos olhares omissos, assustados, perdidos no desfazer de sonhos, esperanças. Um adeus assim, solitário, um corpo jacente que não se comunica. Um alma latente em nossas mentes, que não se permite um toque de fé, um apego, uma certeza de presença. Desliguei rápido, o som, jogando no lixo os últimos acordes americanos de noite feliz. Um coral emitia outras noites felizes, ao longe, trazidas inevitáveis pela sopro do vento. Maldoso, conduzia aos nossos ouvidos a festa a qual não fomos convidados. Olhei para ela, avistei os olhos molhados e embarguei a voz, caso pudesse emitir qualquer ruído. Fechei os vidros, acionei o motor, afastei-me devagar pela avenida enfeitada: luzes, árvores frondosas de anjos, painéis estimulando a paz, sinos que dobram solenes, pessoas partilhando afeto. Queria fechar os olhos e avistar dentro de mim, o que enxergava lá fora. Mas revivia a cena do hospital, o soro espargindo gotas que se exauriam lentamente, tal qual a energia que simulava no olhar, no meio sorriso, na voz pausada e fraca. Fitei as mãos magras, esverdeadas pelo espalhar do sangue, ajustando-se nas carnes frágeis, cujas veias não mais comportavam. Senti pena. Dele. De mim. De viver sem ele. De perdê-lo assim, impune. Eu, cheio de vida, esperança. Ele, o futuro que me deu. Esgotou-se. Permitiu-se a si devolver o que ganhara com esforço, para dar-me de graça. Assim, como me dera a vida, a educação, o caráter. Meu pai. Voltei-me para fora, esticando o olhar pela janela branca, avistando um azul acinzentado, entorpecendo os pensamentos, imergindo no passado em que ele me sustentava pela mão e segurava consigo a estrutura de meus sonhos.

Afastei-me, invadi ruas que crianças e adultos misturavam-se numa atmosfera de alegria. Queria reviver aqueles dias felizes que não mais representavam nada, naquele momento. Queria ser feliz tanto quanto eles: preocupados em que estavam em vivenciar a unidade, o afeto, o prazer de estar junto. Mas não me dava este direito. Melhor voltar pra casa, assistir de camarote a felicidade alheia. De repente, as luzes apagaram. Os acordes uníssonos dos corais, os risos, apertos de mãos, estourar de champanhes, badalar de sinos, buzinas de carros, tudo parou. O mundo parou e nada mais havia do que escuridão total e absoluta. Tentamos olhar-nos, inquietos, coração doído, aos saltos. Ver um nos olhos do outro a indagação que assolava nossa mente. Mas nada víamos. A bruma era densa, uniforme, avassaladora. Um mundo irreal se apossava de nossa realidade. Já não tínhamos certeza de nada. Se realmente havia alguma coisa. Se existíamos, se a vida era como entendíamos ou se partilhávamos de um ambiente virtual e tudo não passava de ficção. Por que aquele silêncio? Por que nossas bocas se mexiam em câmera lenta e não articulavam sons? Por que nossas mãos não se tocavam? Por que nossas mentes não se comunicavam? Por que não sentia suas mãos quentes, carinhosas, esforçando-se em acalentar uma esperança, ínfima que fosse, um desejo intimo de voltar a ser feliz? De vivenciar, quem sabe, uma noite de Natal, onde Cristo não fosse uma ficção relegada a segundo plano, abandonado pela incompreensão da dor que me alicerçava o peito? Ou talvez Ele estivesse aqui, bem perto, neste silêncio incondicional, cujas verdades absolutas representem sentido. Fiquei assim parado, não sei por quanto tempo, e acordei quando um balão estourou em meus ouvidos. O primeiro som, o primeiro traço de luz, a visão antes turva, agora assimilando a luz que se difundia e me atingia em plenitude. Um menino se aproximou do carro, estendeu o braço, entregou-me um balão colorido. Sorrindo, um sorriso tão largo e espontâneo que revivi por uma fração de segundos a imagem de meu pai. Tal qual revelava, quando me estimulava as primeiras letras, abrindo um mundo aos meus olhos nas páginas férteis do jornal, orientando-me na leitura, sorrindo, satisfeito com minhas primeiras descobertas, indicando com o dedo, muito mais do que os sinais gráficos, mas os sinais de caráter e determinação.

Senti o afago no pescoço, o resfolegar de mãos macias, perfumadas, inserindo-se suaves entre meus cabelos. Olhei para ela e sorri. Voltei-me para o menino e não o vi mais, perdido que estava na multidão que se aglomerava para a ceia, que imaginei, coletiva. Os acordes voltaram mais fortes. Os sinos dobraram com mais intensidade. Uma atmosfera de paz se instaurou em nossas almas. Uma lágrima escorreu, obstinada, molhando-me a boca. Ela aproximou-se, beijou-me devagar, lábio no lábio, respiração doce, apaziguada.Retribui e ouvi um feliz natal, que vinha de fora. Que vinha de nossas mentes. Que vinha de nossos corações. Que eu entregava a meu pai, em troca do futuro que me legara. Feliz Natal!

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 20/12/2007
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