Fome sagrada ou maldita?


          Depois de iniciada, a cultura dos costumes se torna determinante no comportamento de um povo. Isso na sociedade, dentro de casa, na família, também nos modos de habitar, de alimentar-se, na prática sexual, no lazer e nas manifestações artísticas. Enfim, em tudo da vida, inclusive da morte, como conceituá-la e tratar o corpo do falecido. Alguns exigem, aos mais próximos, os procedimentos do post-mortem, que, às vezes, não são obedecidos, tampouco levados em consideração. Os enterros relativamente variam, tanto como no estilo de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, como ao modo das pequenas cidades do interior, como também nas grandes metrópoles ou nos mais distantes municípios, ou os feitos no México.

          Alexandre, o grande, famoso rei da Macedônia, também morreu... Ainda no auge do seu poder, sentindo que se aproximava a morte, recorreu ao costume da sua “última vontade”, ordenando, aos seus mais fiéis generais, três últimos desejos: Quando morresse, o seu caixão fosse carregado pelos seus médicos, para que percebessem que a batalha contra a morte não foi vencida; o segundo seria que todos os seus bens, ouro, prata, pedras preciosas e tesouros conquistados fossem espalhados no caminho do féretro para que vissem que nada vale a luxúria tão desejada; e, por último, que deixassem suas mãos livres e vazias, fora do caixão, balançando ao vento. Vazias como nasceram, vazias como morreram, numa demonstração de que nada estaria levando, do que ganhou em vida. A história é antiga, mas suas indiscutíveis lições ensinam com muita atualidade. Ricos e poderosos, inquestionavelmente, morrem de mãos vazias, não importam as circunstâncias, e nada levam das suas curtas vidas...

          Contudo, não é latente, entre todos nós, como impera, no nosso mundo, assoberbada ganância, coisa agressiva de quem gosta só de somar para si, subtraindo dos outros ou enormemente do outro. Quando conseguem fortunas gigantes, acumulam, acumulam, sem tempo para gastá-las, para usufruí-las, como se fosse um castigo de Deus, deixar que tais riquezas permaneçam, em vida, quase intocáveis. O genial Virgílio (Eneida III, 56 – 57) cogitou expressar justamente a condenação à ambição insaciável, que os gananciosos alimentam para possuir excessiva e desnecessária luxúria. Esses não pretendem ser, apenas ter; e quanto mais têm, mais, desnecessariamente, procuram ter. Como se fosse de barriga cheia, avaros sem digestão, e gulosamente comendo, sem digerir, e já demasiadamente fartos.

          Os intelectuais ambiciosos traduzem Virgílio ao inverso: justificam que “a fome do ouro é sagrada”, bem-aventurada. Quando a sacra fames significa, no texto, a “maldita fome do ouro”, o ouro intocável seria objeto do Olimpo, maldito e condenável que os humanos não deveriam tocar, sob condição de serem castigados pelos deuses. O percurso da vida é uma breve viagem, em tempo veloz, para que se encher de bagagens, se, em vida e sobretudo depois da morte, não serão usados, inúteis que se tornam entulhos? 

          Os gananciosos transformam-se em escravos dessas coisas adquiridas pela vontade de ter ou de apenas ser possuído por tais coisas. Há uma forma de se remediar a patologia da ganância: consciência do sentido da vida ou de nos valorizarmos à medida em que somos mais do que temos... Não vale a pena passar a vida, somente cuidando do que se tem. Para evitar tal derradeira e vexatória frustração, busquemos ser mais do que ter. In somma, nós próprios somos o nosso tesouro, o que se revela na máxima de Jesus Cristo: "Onde estiver o tesouro, aí estará o teu coração (Mateus, 6, 19-21). E também quanto mais se carrega ouro nas costas, mais pesado é o fardo...