Dia do padre, mas com poesia
Gosto muito de uma poesia de Adélia Prado intitulada Missa das 10. É de sua obra O pelicano (1987). Cai bem como introdução ao texto de hoje:
Frei Jácomo prega e ninguém entende.
Mas fala com piedade, para ele mesmo
e tem mania de orar pelos paroquianos.
As mulheres que depois vão aos clubes,
os moços ricos de costumes piedosos,
os homens que prevaricam um pouco em seus negócios
gostam todos de assistir à missa de frei Jácomo,
povoada de exemplos, de vida de santos,
da certeza marota que que ao final de tudo
uma confissão ‘in extremis’ garantirá o paraíso.
Ninguém vê o Cordeiro degolado na mesa,
o sangue sobre a toalha,
seu lancinante grito,
ninguém.
Nem frei Jácomo.
Frei Jácomo é a típica imagem do padre das novelas da globo. Vamos descrevê-lo: idoso, barriga à frente do corpo, calvo, bonachão, já em idade de dizer o que quer sem se preocupar com os superiores, amigo de todos, sem muitas cobranças litúrgicas pois já não tem paciência para isso, possivelmente gosta de uns goles. Mas é um santo homem. Seu funeral encherá a igreja como nunca se viu naquela cidade. Também gosto do frei Jácomo. Tem suas virtudes, não obstante seus limites.
Mas Adélia poetiza outro clérigo. Talvez o frei Jácomo anos antes de ser o frei Jácomo do poema – quem sabe!. Aqui a erudição é diferente. Os requintes poéticos são outros. O clímax é pintado em tons de cinza. Não há nome, com é dado ao frei. Apenas se diz O clérigo:
Só porque um dia escrevi-lhe
‘eu contorno com o dedo a papoula encarnada’
irou-se, tomou por afoiteza, invasão de privacidade
o meu verso floral.
Sei que as palavras são dúbias,
temos falhas nos dentes, sibilamos.
Quem sabe a imagem do dedo,
o nome redondo da flor,
quem sabe sua cor sanguínea
lhe despertaram as pudendas,
pois – contra seu desejo – sente amor por mim.
Desapontou-se à toa,
nem eram papoulas
as belas flores do lenço.
E agora, o que dizer? Lembro-lhe que não foi um padre quem escreveu as poesias. Foi uma mulher, uma fiel de missa dominical, uma poetiza de marca maior, cuja sensibilidade ultrapassa os limites do comum. Alguém que viu e acreditou, como está nas Sagradas Escrituras. Há quem prefira frei Jácomo. Há quem se escandalize com O clérigo. Há quem nem lerá meu texto. Há os demais. E há tantas coisas a dizer.
Hoje, devido as comemorações de São João Maria Vianey, celebra-se o dia do padre. Todos recebemos muitas felicitações, pelas quais certamente somos gratos. Há verdades, exageros e equívocos em tudo que nos dizem. Há quem não é padre dizendo quem o padre é. Há quem pouco sabe dizendo como o padre deve ser. Há reflexões profundas, humanas, divinas, sagradas. Há discursos superficiais. Há mensagens “a pronta entrega”.
E há um dia de trabalho, como qualquer outro dia, feito aquele à beira do Lago de Genesaré, no qual o Senhor olhava pescadores lançando as redes. Há um padre, como qualquer outro pobre filho, poeta ou não, pregador ou não, de palavras dúbias ou não, santo e pecador, a quem um dia o Senhor também olhou. Não só. Igualmente chamou. E o verbo usado foi “farei”. Ainda que padres, estamos em fase de modelagem, somos obras inacabadas, somos peça duma oficina. Somos um poema apenas começado... – alguém falou isso.