Quase...

Quase ...

Assentado em minha poltrona dos contos, eu aguardava a chegada de Maria que havia ido ao ensaio do coral que tanto fora crucial. Ouvi o estrondo de uma buzina desbastada a escandalizar a rua e imaginei que algum entregador de fast food estava com suas mãos nervosas. O som se transformou em um grito afinado de Maria que pedia socorro:

- Amor, Amor!

Mais que rapidamente, levantei-me em saltos e corri desengonçadamente pelo corredor que me levava ao seu encontro.

Ao chegar próximo ao portão, vi a metade do automóvel de Maria estacionado no caminho da garagem e seu olhar assustado a se aliviar quando me viu. Imaginei alguém tentando invadir o meu território e como leão enfurecido, saltei para fora e avistei um jovem de roupas pretas e mochila sob o seu braço destro a tentar passar pelo espaço bloqueado pela astúcia de Maria. Encurtei o espaço entre mim e o indivíduo que inalava um olor de murrinha a me deixar mais tranquilo, pois o decifrei como um ser moribundo vitimado por um grupo social que pensa apenas no lucro, porém perigoso devido a necessidade de se obter algumas moedas para sua dependência. Não permiti que ele retirasse algo de dentro da bolsa o intimando a fechá-la e perguntar o que realmente ele desejava e em voz embaraçada com o efeito da droga maldita não conseguiu me convencer que era apenas um pedinte.

Quando retirei o meu olhar preciso do rapaz, avistei Maria sob a marquise do muro apossada de um cabo de vassoura pronta para entrar em ação em defesa de seu amado que, enfim, já estava decidido que era necessário apenas abastecer o indivíduo com mantimentos da nossa despensa. Ao entregar a ajuda ao incessante falador de coisas surreais que ora contestava Deus, ora o reverenciava, entendi que a obsessão era outra: qualquer trocado para que houvesse a possibilidade de adquirir o crack que abatia aquele o corpo.

Finalmente ele se foi sob o olhar do poeta que em desespero queria apenas defender sua musa de uma tragédia anunciada, um enredo que poderia ir além da verossimilhança e alcançar uma linguagem de função referencial a sair em todos os jornais.

Um drama fora anunciado

E por descaso nada a engendrar

Havia o presságio de uma nova tragédia

No palco de algum lugar

Uma peça escrita pelos lucreiros

Narrada pelos graves dos locutores

A deixar o espectador em planto

E mortos os atores moribundos

Onde está a censura que não impediu o espetáculo

Composta por ávidas criaturas, consultora do Dr. Oráculo?

A Comunidade chora ...

Ed Ramos
Enviado por Ed Ramos em 03/08/2023
Reeditado em 05/08/2023
Código do texto: T7852560
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