OS MORANGOS DO "PAPAI-NOEL" DA CALÇADA...

Quem passar por ali vai vê-lo, na sua costumeira e heroica labuta, a qualquer hora do dia.

Parece plantado, diuturnamente, naquele exato ponto.

Sempre que faço meu caminho ao trabalho, logo cedinho, eu o observo descarregando suas mercadorias trazidas num velho automóvel, talvez uma Brasília duns trinta anos de uso, prontamente estacionado ao meio fio do seu suor diário.

No meu trajeto eu o fito até perdê-lo pelo retrovisor , mas nunca me foi possível fazer um exato inventário do que comercializa, embora o que mais me chame a atenção é um "varal" onde ele dependura alguns artesanatos.

Além de outras iguarias , as mais visíveis são as caixinhas de morangos, dessas espalhadas pela cidade; e através da variação do seu preço, ali bem exposto ao público passante, eu consigo deduzir tanto o movimento da safra da fruta como também a situação das nossas micro e macro "economias".

Ele seria um personagem absolutamente comum aos dias de hoje, não fosse o fato de se tratar dum idoso de aparência muito frágil, face entristecida, passos curtos e lentos, movimentos trêmulos, força nitidamente diminuída e pele branca, bastante "fotodegenerada" pelos vários sóis das suas tantas estações, presentes e passadas. Um herói que ainda mira o futuro.

Dia desse passei por ele a pé, justo ali pela sua calçada, e então, não pude deixar de puxar um papinho.

Fiquei sem graça porque ele estava com sua marmita do almoço aberta e eu não queria ser indiscreta.

Mas ele prontamente a colocou de lado, saiu do automóvel com grande dificuldade e gentilmente veio ter comigo.

-Tudo bem com o senhor, eu não quero incomodar, é que vejo o senhor aqui por tanto tempo, faça chuva, faça sol, que resolvi conversar.

Como o senhor se chama? Ah, depois eu também quero levar uma caixinha de morangos- assim comecei minha abordagem.

Ele, então me atendeu prontamente.

-Imagine, a senhora não atrapalha não, é um prazer.

Depois de nos apresentarmos nominalmente ele me descreveu a sua biografia.

-Sim, estou nesse ponto há quase dez anos. Tenho oitenta e cinco anos , vivo dum salário mínimo e do que consigo fazer nesse comércio. Tenho que trabalhar, senão não sobrevivemos. Tenho uma casinha e esse carro que me sustenta.

Vivo com minha esposa, da minha mesma idade e que faz esse artesanato do varal para me ajudar.

Há oito anos perdemos uma filha num acidente de carro. A vida acabou para nós. A dor não vai embora. Tenho outros filhos, vários netos e bisnetos, família grande, mas a dor da perda é incurável para nós.

O meu genro, que sobreviveu ao acidente, nunca mais teve a cabeça boa. É cuidado pelo filho, meu neto. Só Jesus para nos dar força e nos confortar...( terminava já com os olhos marejados)

Ali eu engoli seco...

"sim, há dores que nunca passam...". "é preciso tentar o analgésico da fé".

Nesse intervalo, enquanto eu observava os lindos tapetinhos de barbante, os aventais e as toalhas de caprichado "patchwork", tudo feito por sua esposa , lhe chegou um freguês que levou dois pacotões de biscoito de polvilho.

Pela sua expressão...parecia graça divina, posto que ele fez vinte reais. "Com a graça de Deus", me confessou em ação de graças.

Ato contínuo, seguimos a papear.

-Fiz de tudo nessa vida, sabe? Não estudei, fui camelô e fui o melhor "Papai-Noel" do meu tempo- me disse ele com orgulho estampado na face dolorosa. A senhora precisava de me vê! No Natal todos me queriam. Fui Papai Noel no Nordeste e em Curitiba...era uma disputa pelo meu trabalho. Foi assim que paguei meu INSS e hoje tenho a aposentaria que nos ajuda.

Enquanto ele falava ...minha analogia social com os surreais fatos políticos noticiados por longos e longos e mais longos anos, corria solta.

Aquilo tudo era o resultado, a prova cabal, material e sensorial, irrefutável, do todo que não sai do lugar.

"Estatuto do idoso..ahã..." -pensei com meus botões.

Decerto, não haveria nenhuma possibilidade de alguma biografia semelhante ser batalhada "na unha", aos pingos de suor pela calçada, pelos tantos e grandes "Papais-noéis" dos inúmeros palanques ineptos, desses que tudo consertam sem nada consertar; ou de algum "deus" da salvação ter tido um portifólio de vida para discursar como o do relato que eu acabara de ouvir, o do meu " Papai -Noel" dos morangos daquela tão dura calçada.

-Bem, estou indo, foi um prazer conversar com o senhor.

Assim, depois de embrulhar meus morangos, de repente o Papai -Noel me deu um abraço, me beijou a face e me disse: " é só um carinho de pai, vai com Deus".

Sai dali emocionada, com a sensação de ter presenciado, em minutos, um triste Natal duma vida inteira.

Ele não sabia mas, na qualidade de Papai -Noel, acabara de me presentear com mais uma crônica nascida nas calçadas.

Dessas cujo grito ecoa no mais profundo anonimato das muitas vidas.