Volto mesmo nunca tendo ido
A ideia do que vai embora e mesmo assim permanece, tem me puxado pelo pé, me posto do avesso. Explico. A memória, o tempo, a saudade, e essas coisinhas assim, são a única matéria, a sustentação, o que garante pra nós que estamos vivos. O relógio de vidro que consome grãozinho, um por um. A pele que se enruga e vira árvore. Isso com o corpo.
A cabeça não, a cabeça ela é pantera voraz, sexo, senhora de si. A cabeça navega entrecortando os fatos, e é o que consegue lembrar. Trazer a luz. Trazer a luz e moldar com massinha as figuras, rostos, cenas. Se eu mal-resolvo uma coisinha passada, meu oceano vai correr sempre para trás, meu barco vai ser de papel machê. Uma eterna espera do que já aconteceu. Se eu me transbordo de futuro, me excedo de se, meu oceano ainda não vai ter nem brotado. Vai ser um buraco cavado com os pés.
Acordo meio que ainda dormindo, um bicho penumbra. Não consigo dizer se é sonho ou vida. Será que é isso dormir; O instante morrer antes de acordar? Me assusto. Ontem fui dormir tardíssimo, não faz nem sentido eu acordar assim junto com o dia, tão cedo. Esse pensar vem primeiro que eu, sem deliberação. Ainda tou cerrando os olhos, vindo pra terra. Vejo mainha se aproximar de mim, aquela altura ela já devia estar indo pro trabalho. Me sinto feliz em vê-la. Ela se aproxima, beija minha testa, faço o mesmo. Não porque pensei, mas no instinto, porque é o que é. Volto a dormir
Como conciliar as permanências psíquicas com as físicas? Como estar sempre onde se quer estar? Melhor; como ter sabedoria separar o querer, fullgaz, a planta carnívora, o telúrico, isto é, as coisas efêmeras do desejo, do que é realmente necessário. Do ninho, do essencial, do abraço?
Um pouco de passado também não faz mal, vou dizer. Ontem a noite, já era madrugadinha, me chega uma mensagem no whatsapp, um amigo querido. Desenterramos grandes pedaços de passado, que outrora se mexiam, enterrados vivos. Lembranças felizes, dolorosas, mornas. Eu tenho um drive cheio dessas coisas, vídeos, fotos, prints, e aí isso me denuncia um pouco, esse adiamento. Sempre falo que vou apagar o que não é essencial, esse montueiro de arquivo-nuvem, mas nunca apago. Sei lá, e se depois eu descubro que o que mandei embora, aquilo que eu apaguei, era um eu que eu ainda precisava?
Eu tinha essa mania, ser a lente com a câmera ligada, guardar. E até então minha mente tinha eliminado aquilo da existência, eliminado esses momentos meio ásperos, quase um modo de defesa; Esquecer pra proteger. Mas agora sei que não é bem assim. O lembrar é didático, nos faz ter certeza sobre quem não somos, e sobre quem, por sorte e vigilância, também não seremos .
Os vídeos eram de um passado não tão antigo, uns quatro anos pra trás. E aí fui lembrando junto, e era uma coisa digna de um filme do David Lynch, voltar e ver na tela, esses corpos que já não são mais a gente, sorrindo, sendo. Os vídeos não tinham apego linear nenhum, órfãos de história e luz, desfigurados e roubados de contexto. Eram só arquivos envelhecidos, fragmento.
Não sei. talvez seja mentira o que eu disse lá em cima. Talvez a cabeça e o corpo não estejam tão em desarmonia assim. Talvez sejam espelho um do outro. Gêmeos opostos.