Será mesmo que ser um sujeito utópico é mesmo tão ruim assim?
Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que veem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os veem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam
- Jack Kerouack
Quando você expõe um plano, esboça uma ideia, sugere uma mudança, ou propõe algum tipo de reformulação sobre algo, geralmente isso exige uma boa dose de boa vontade das pessoas que estão ao seu redor e dividem com você o contexto em questão para fazer uma tentativa. Isso acontece tanto na vida comum de cada um de nós, como acontece também no contexto da política nacional. Não é comum descobrir a crítica entre oposição e governo em tons de "o que está sendo proposto é impraticável" e "é um absurdo o que está sendo proposto, pois é irrealizável" e falas congêneres.
Fato é que, em ambos os contextos, as mudanças paradigmáticas exigem esforço, dedicação, novos aprendizados, pré-disposição ao fracasso e certa curiosidade corajosa e inovadora. Tudo isso além de uma boa resolução de cada envolvido no processo consigo próprio a respeito do próprio narcisismo, coisa rara como goiabada cascão em caixa, como diz o samba¹.
Você pode sem muito esforço lembrar muitas boas ideias que já teve (talvez esteja tendo uma agora) - ou observou alguém as tendo - e a coisa não ganha nenhuma materialidade por conta de uma desistência prévia dos demais: "Isso é difícil", "isso é improvável", "isso é utópico demais". É comum a sensação ingrata de estar sozinho, e por vezes quase ser convencido pelos outros de que você "sonha demais" e deveria "pôr mais os pés na realidade". Talvez até nós mesmos já tenhamos soterrado uma boa ideia de algum colega, advertindo-o sobre um provável insucesso, motivados secretamente por nossa própria inveja ou preguiça.
Será? Será mesmo que ser um sujeito utópico é mesmo tão ruim assim?
Você não é lunático por ser criativo o suficiente para projetar cenários com variáveis que os demais do seu grupo sequer conseguem reconhecer ou avaliar.
A primeira consideração que aqui farei a bem da verdade é uma correção do senso comum: Ser utópico é bem distinto de ser lunático. Geralmente, quando se acusa alguém de ser um sujeito utópico ou ter ideias utópicas, a afirmação pode carregar dois sentidos:
O primeiro deles não é incomum: pode se tratar de uma simples e má intencionada falácia ad hominem², onde o objetivo não é a discussão do objeto em tema, mas um ataque (ou tentativa de) ao argumentador, e não o argumento. É o recurso de quem não tem recurso. É o apelo dos desesperados. É o expediente da ferida narcísica do outro que não suporta que nada no universo seja mais brilhante do que o seu próprio reflexo no espelho do banheiro da firma. Nada de produtivo pode sair de um diálogo com um adepto do ad hominem contumaz.
O segundo deles é pelo menos, honesto. Pressupõe que realmente o seu grupo ou interlocutor compartilha apenas dos significantes do senso comum sobre o termo utopia, estabelecendo-o como conceito parelho a outros conceitos que remetem à ausência de realidade, tais como: loucura, devaneio, delírio, alucinação, burrice, insensatez, ingenuidade, e por aí a fora. O termo utopia orbita esta constelação de significantes para este grupo ou sujeito. Isso é um dado subjetivo, porém, o sujeito toma como informação objetiva e pressupõe que o sentido do termo seja compartilhado com todos, uma vez que é do senso comum. O erro é tomar todos por muitos. Isso sim está mais perto da loucura³ do que qualquer ideia por mais impraticável que seja, mas não é assunto para esse texto.
A segunda consideração que farei neste tópico remete a outro texto deste blog em que eu comentei a respeito da tendência de nós nivelarmos nossos contextos pela variável mais limitante. A maioria de nós aprendeu a achar certo conforto na mediocridade do cotidiano. De certa maneira em muitos contextos, não nos sentimos incentivados a fazer melhor ou a fazer tudo o que pudermos. Algumas vezes sequer vemos sentido ou avaliamos haver razão para tanto. Talvez seja alguma espécie de mecanismo de defesa (psicanaliticamente falando) nosso contra um modo de vida que exige demais e entrega de menos. É uma hipótese. E mesmo quando nós nos dedicamos ao melhor, o nosso melhor não é o mesmo melhor todo dia, mas esta é outra constelação e não exploraremos por hora.
Quero que foquemos em uma percepção em particular: a de que, quando vivenciamos um determinado contexto (pode ser uma carreira profissional, uma relação familiar, um casamento, hipoteticamente qualquer contexto), avaliamos o nosso limite de ação dentro deste contexto. Inicialmente é uma estratégia inteligente, saber até onde se pode ir com segurança. Isso funciona muito bem quando o contexto é relativamente novo e nós não temos dados o suficiente ainda para tomar decisões com assertividade. Nós pisamos devagar, nós temos cautela. Quando uma pessoa ingressante age de forma diferente disso, nós a rotulamos como imprudente, espaçosa e sem noção. Pois é isso que vamos adquirindo conforme executamos no contexto: noção sobre o que está passando, o que é, como funciona, o que é esperado. Identificamos um padrão e, se for nosso interesse, o reproduzimos.
Os grupos que compõem os diversos contextos de nossas vidas são diversos e heterogêneos. Dentre eles, há os contextos com grupos mais engajados e comprometidos, os centralizados em um membro ou em uma elite de membros, os descentralizados, os que pressupõe o entendimento implícito de regras e normas, os que exigem o reconhecimento formal de regulamentos, etc. Tudo muito diverso, e em cada um desses contextos, nossa inteligência emocional e cognitiva trabalha para que possamos transitar entre eles e navegá-los com alguma habilidade.
A fase de experiência de um contexto é subjetiva e depende de insondáveis fatores, mas felizmente para nossa análise aqui isso não faz diferença. O que destacamos é que todo estágio contextual cedo ou tarde, finaliza. Inevitavelmente vamos nos tornar veteranos em um contexto caso permaneçamos nele por muito tempo. Essa condição nos trará novas oportunidades. Oportunidades que não somente pressupõe escolhas, como as podem exigir e, por sua vez, acarretam uma miríade de consequências.
Em outro texto que estou produzindo, desenvolvo os reflexos daqueles que diante de novas oportunidades, não topam o desafio e tentam permanecer apegados ao atual estágio das coisas, mas se veem pressionados pelos membros do grupo a se posicionar ou cair fora, ou como dizemos no popular, ir ou rachar.
Por hora, nesta nossa análise aqui, vou me deter nos processos do sujeito contextualmente veterano, que devido a experiência e ao bom uso de sua inteligência (no sentido mais amplo possível do termo, não restrito ao aspecto cognitivo), é capaz de vislumbrar possibilidades inéditas de transformação ou conservação (dependendo do objetivo) por criar ou entender variáveis que os demais membros do grupo não são capazes de compreender ou vislumbrar.
Esse sujeito costuma ser admirado por uns tantos e ridicularizado por outros tantos. Há quem reconheça nele qualidades de líder, espírito inovador e ideais visionários, e outros, que apenas o pintem em termos de um falastrão, cioso de atenção ou - na mais gentil das hipóteses - pouco prático e nada pragmático. A partir do nascimento desse sujeito no contexto, há uma luz que não pode ser apagada. Para alguns, ela iluminará. A outros, ela será motivo de cegueira.
Por vezes este sujeito é capaz de propor ações que os demais consideram fora do seu tempo no melhor dos casos pelos que o admiram, e mentiroso no pior dos casos, pelos que os que o ridicularizam. Isto porque as soluções que muitas vezes propõe exigem recursos que ainda não foram desenvolvidos ou criarão uma demanda de desenvolvimento (e isso esbarrará em vontade política), outras vezes a lucidez com a qual este sujeito ilumina contradições e falhas de um contexto, desagrada à quem (e sempre há esse quem) se beneficia com o obscurantismo, ou simplesmente com as coisas do jeito que estão. Em termos políticos, nomeamos esses como reacionários ou conservadores. E eles não estão apenas nas câmaras e plenários, eles estão em qualquer grupo heterogêneo de pessoas que precisam decidir alguma coisa sobre qualquer coisa.
Quem nunca chegou conscientemente com uma ideia muito boa - e plenamente aplicável - para o chefe e ouviu "Isso não é possível. Isso dará muito trabalho" e saiu com a impressão de que o interesse em resolver aquela demanda ou problema só existe formalmente? Como se o interesse em trocar o curativo fosse sempre maior que o da cura da doença?
Há também o caso das soluções serem propostas com base na pressuposição de uma boa vontade dos demais. Quando em um contexto onde a mediocridade é a regra, esse espírito é logo assassinado, à moda do filósofo platônico que volta à caverna avisar que a sombra não é a coisa.
Em um exemplo paradigmático, todos já fomos (ou ainda somos) jovens que um dia buscamos uma carreira. Saímos da formação básica, do ensino médio ou da universidade cheio de ideias e planos. Após trabalhar uns meses, descobrimos os reais gargalos e desafios da carreira. Entusiasmados propusemos e alguns de nós até implementamos ações, algumas com sucesso total ou relativo. Mas fizemos isso sob as falas maldosas dos colegas na saleta do café e apostas sobre até quando duraria nosso entusiasmo. Na primeira oportunidade que tiveram de nos dizer que "isso era fazer trabalho a toa" porque efetivamente nada mudaria, ou seria logo desfeito, disseram e mal disfarçando sua alegria em promover a frustração no outro. Na educação, quantas vezes eu ouvi: "Sai dessa carreira, isso não dá futuro" de colegas que estavam realmente ansiosos para atribuir as aulas que eram as minhas.
Alguns desistem. Outros se conformam. E não dá para julgar ou culpar ninguém por isso. A essa altura da vida, eu também sou uma espécie de conformado ressentido com um monte de coisa. Contudo, ao contrário de muitos colegas que se incomodam quando chega alguém jovem e utópico, eu fico inspirado. É frequente eu me sentir realizado pelos feitos dos meus colegas mais novos. Quando eles vão mais longe do que eu fui, de alguma forma eu vou com eles. Essa é uma das características que eu compartilho com utópicos: eles querem que dê certo, mesmo que não tenha sido eles que fizeram.
Como milhares de sementes que são jogadas ao vento, muitos espíritos visionários não germinarão em contexto fértil, e amargarão tentativas ininterruptas de impedir seu florescimento. Outros, em contextos mais felizes, encontrarão contextos favoráveis, servindo de inspiração e coordenação do que de melhor pode ser feito. Alguns serão líderes, outros, silenciados. Alguns pagarão com a própria vida o preço de sua autenticidade.
A bem da verdade, pode até ser que as ideias das gentes utópicas sejam mesmo impraticáveis, e que exijam do contexto algo que ele não pode dar, ou que estejam realmente fora do seu tempo. Mas também, a utopia não precisa ser mais do que isso. O papel da utopia, e consequentemente do sujeito utópico, não é se realizar. É apontar uma direção. As utopias e os utopistas existem para desenhar o futuro, para apontar um caminho, para projetar tudo o que nós poderíamos fazer se nós efetivamente quiséssemos fazer nos contextos de nossa existência.
Alguns dos sonhos mais utópicos da já imaginados se tornaram realidade ainda que de forma imperfeita e frequentemente superficial porque sucessivamente as pessoas acreditaram neles. Não fosse o sonho de uma saúde pública de acesso universal não haveria SUS, não fosse o sonho do fim da exploração do humano pelo humano não haveria direitos aos trabalhadores, não fosse o sonho da justiça não haveria lei, e dá para passar o resto do dia citando exemplos.
Todos nós somos utópicos em potencial. Talvez nossa existência fosse enriquecida se passássemos ao ato exercitando essa capacidade em nós com mais frequência. Você não tem a obrigação de ter um plano detalhado das suas boas ideias, ou de como implementar mudanças positivas (o que também é subjetivo, e não podemos nos esquecer) na vida das pessoas e no mundo que você habita. O fato de você pensar sobre isso, de comunicar sobre isso, de construir essas ideias com os demais já cumpre a função de inspirar. Talvez milhares de pequenas ações que se espelham nos grandes ideais que você nutre possam ser produzidas para benefício de todos. A utopia, então, já cumpriu o seu papel e como bem sinalizou Kerouac na citação que abre esta crônica, são àqueles que veem as coisas de forma diferente que empurram a humanidade para frente.
¹ Samba gravado pelo músico Dudu Nobre, de composição de Nei Lopes e Wilson Moreira.
² Refere-se a atacar o argumentador ao invés do argumento em si. (Note que "ad hominem" pode também referir-se a estratégia dialética de argumentar baseando-se nos compromissos do oponente. Esse tipo de ad hominem não é uma falácia.)
³ Em psicanálise, quando um sujeito reivindica que seu estado subjetivo seja reconhecido como dado objetivo pelos demais, temos um quadro de psicose.