Barbie Boom

Segunda-feira. Seis da tarde. Já tava começando a escurecer. O Ricardo chegou do trabalho, trocou de roupa e partiu pra rua.

- Bora lá pra caminhada nossa de cada dia!

Ele gosta mesmo é de correr - menos, né Ricardo, que já faz um tempo que isso não te pertence mais: melhor falar que gosta mesmo é de um trotezinho - mas vira e mexe os tendões do joelho inventam de inflamar e obrigam o cidadão a acionar o Plano B.

E olha que tem dia que se resolver dar uma acelerada nas passadas, acaba tendo que voltar pra trás antes mesmo de chegar no meio do trajeto.

E o pior é que a tal da tendinopatia nem aparece direito nos exames. Aí o médico também não fecha o diagnóstico, começa a cogitar de investigar menisco...

- Pode parar, doutor! Eu não vou operar de jeito nenhum!

Então da-lhe remédio e fisioterapia pra ver se melhora na raça mesmo, porque o Ricardo não pode se dar o luxo de fazer o repouso recomendado: precisa mandar bala no exercício diário pra segurar o hipercolesterol, herança de pai e mãe...

E, além da atividade física, ainda tem que tomar rosuvastatina e tentar manter uma disciplina "mais ou menos" na alimentação pra bater o resultado dos exames abaixo de 200.

Aí entra em cena o "Paradoxo de Tostines": detona o joelho pra não infartar ou arrisca "entupir o encanamento" pra não mancar?

- Bora lá pra caminhada nossa de cada dia!

Mas até que nas últimas semanas a dor deu uma aliviada e o Ricardo começou a fazer um treininho mais puxado, correndo uns trechos, andando outros, pra ir voltando a pegar ritmo.

Eita, papo chato!

Tudo isso pra falar que segunda-feira o Ricardo não lembrou de ir ao banheiro antes de sair pro rolê da vida longa.

Ah, esse nome é coisa do doutor, criado na mesma sintonia daquele outro, que virou bordão, verdadeiro mantra recitado por outro médico, muito conhecido na cidade:

- Caminhe, caminhe!

Então tava lá o Ricardo, quase no meio do caminho, com a bexiga estourando...

- Ai, caramba! Não vai ter como segurar até chegar em casa! Vou ter que me virar nos trinta pra não mijar nas calças.

Acabou que deu sorte. O quarteirão logo a frente tava um breu só: todas as lâmpadas dos postes apagadas. Presidente Prudente vive na escuridão pra mais de ano. Já virou endemia!

Mas parece que agora, chegando perto de faltar um ano pra eleição, a Prefeitura fechou contrato pra restabelecer a iluminação na cidade inteira.

Começaram a instalar lâmpadas de led, algumas ruas já estão libertas das trevas. O problema é que o movimento partiu do Centro pros bairros e o pessoal das periferias, que tá há mais tempo no escuro, vai ser o que mais vai demorar pra ver a luz de novo...

O importante é que pro Ricardo tava dando bom pra fazer o número um sem ser visto por ninguém.

- Opa, só encostar numa árvore e aliviar, que já chega a tá doendo!

Mas por que é que nessas horas, justo nessas horas, vem aquela voz, aquela mesmo, a da consciência, pesar na mente da pessoa?

- Nada que é feito escondido fica sem ser descoberto!

- Mas não tô mais aguentando, pô! E também não vou cometer crime nenhum...

Mas quando a coisa é mandada pra dar errado, não tem o que faz dar certo de jeito maneira!

Ficou se enrolando no dilema ético-moral, no vou-não vou, faço-não faço, acabou que não foi nem fez: do nada apareceu uma fila de carros que não acabava mais.

- Agora ferrou! Vou acabar me mijando todo!

Foi quando veio a iluminação! Do poste? Dos carros? Não, das ideias mesmo!

- Tá só a três quadras do Shopping, Cabeça-de-bagre! Só acionar o modo turbo e B.O. arquivado!

Nem cinco minutos e o Ricardo já tava atravessando a Washington Luís pra chegar no banheiro do piso inferior.

Mas dali mesmo já reparou numa fita meio fora da curva: todo mundo, mas todo mundo mesmo entrando no Shopping - vâmo dizer - uniformizado. Cor de rosa!

Tudo e mais tudo: cor de rosa!

- Eita, será que é o que eu tô pensando?

Não deu outra! A confirmação veio quando passou pelo cinema. A fila mais cor de rosa que viu na vida.

- Eita, a Barbie!

Vestido, blusa, brinco, saia, maquiagem, camiseta, cabelo, jaqueta, tênis, pulseira, bermuda, boné, relógio, sandália, óculos, meia e o que mais se possa imaginar: rosa, em todas as tonalidades que se possa imaginar!

Menina, menino, adolescente menina e adolescente menino, jovem menina e menino - serião - adulto menina e menino - verdade verdadeira - idoso menina e menino - pode acreditar, não é brincadeira não - todo mundo com pelo menos uma peça rosa no figurino.

Uma legião de rosa pra ver o filme da Barbie. Bem aquela coisa de surto coletivo. Aquela regra que ninguém ditou, mas todo mundo obedece e cumpre porque quer fazer parte daquela massa, quer pertencer àquilo tudo, quer se identificar e ser identificado por aquela ideia.

Ou porque tem aquela neura do "todo mundo tá indo assim, então vou ter que ir também".

Ou resolveu ir de rosa só porque achou legal mesmo. Um dia diferente, ué! Por que não?

- Caramba! A galera do Marketing da Mattel arrebentou com tudo mesmo!

Pensa no tanto de gente que esses caras conseguiram sensibilizar e no tanto de grana que fizeram girar.

Também, vâmo combinar que fizeram tudo muito bem direitinho: criaram uma expectativa bem lá atrás, meses antes do lançamento do filme e foram alimentando o interesse das pessoas aos poucos, com trailers, anúncio de elenco, vazamentos de informações "confidencialíssimas".

Sem contar as especulações sobre a mudança ou não do tão discutido estereótipo da Barbie. E não é que tem gente que sai do cinema concordando com a menina que chama a Barbie de fascista? E, na outra extremidade, gente louvando a protagonista como a maior lacradora de todos os tempos...

Pois é, em tempos de polarização tudo tem que passar pelo crivo da ideologização. E cada lado procura elementos na "bola da vez" pra validar os princípios e valores que defende.

Acaba que um crava que o filme é favoritaço pro Oscar e outro preconiza que quem assistiu só vai ter salvação se passar por um exorcismo.

O lado positivo dessa divagação toda do Ricardo, observando aquele imenso mar de rosa, foi ter dado um perdido no cérebro e conseguido segurar a mangueira fechada até chegar no banheiro.

O que não registrou - mesmo porque não tinha como enganar tanto assim o sinal da necessidade orgânica piscando cada vez mais rápido - foi que o povo também tava olhando pra ele, reparando em alguma coisa nele.

É que agora, vendo a placa com a seta indicando a direção dos sanitários e já entrando no corredor, focou só no que interessava ao rim mesmo.

- Oh, glória! Que leveza! Que felicidade! Agora volto pra casa na paz!

Aí sim, passando de novo pelo cinema, o Ricardo percebeu que ele era o foco de muita gente. E notou no semblante de quem olhava pra ele um misto de surpresa e sarcasmo.

Alguns até apontavam o dedo, outros esboçavam aquele sorrisinho maroto de deboche. Foi quando conseguiu ouvir uma conversa sussurrada.

- Olha aquele chaveiro!

- Será que ele vai entrar na fila?

- Então é isso! O chaveiro! Já tava começando a ficar bolado...

O chaveiro do Ricardo é um sapatinho rosa. Foi presente da Bárbara e do Jobson, os melhores amigos do Ricardo e da Nenê. É tanto sentimento envolvido e tanta história vivida que precisa de umas par de sexta-feira pra registrar. Opa, bora botar na fila pra escrever...

O presente - na verdade é um tenisinho de bebê - foi o primeiro que o Ricardo e a Nenê ganharam quando ela engravidou da Taciana. Por causa desse afeto todo, o mimo ficou guardado quando os pezinhos já não cabiam mais nele.

E voltou a ser usado quando apareceu outro par de pezinhos compatível com seu tamanho: os da Lara. E depois voltaram pro armário de novo e lá ficaram por anos.

Até que um belo dia, o Ricardo resolveu dar uma geral pra doar roupas e calçados pra Campanha do Agasalho e achou a caixinha, guardada lá no fundo.

E veio a ideia de dar uma nova finalidade pros tênis: transformou em chaveiro. Um chaveirinho rosa!

Era ele que tava chamando a atenção da galera da fila do filme da Barbie...

Aí o Ricardo começou a rir sozinho. Olhava pro chaveiro, pras pessoas e ria. E as pessoas, vendo que o Ricardo tinha sacado o motivo da zoeira, olhavam pro chaveiro, pra ele e riam também.

E o Ricardo sentiu naquela hora que tava fazendo parte daquela massa, tava pertencendo àquilo tudo, tava se identificando e sendo identificado por aquela ideia.

Sem querer, entrou de gaiato no Barbie Boom!

- É pra acabar! E tudo porque só entrei aqui pra mijar! É cada uma! Bora pra casa que por hoje já deu minha cota de presepada...

- Ô, Campeão!

Aí o Ricardo parou.

- E agora? Olho pra trás ou toco em frente?

- Ô, Patrão!

- Mas será possível que é comigo mesmo?

- Ei, você! Do chaveirinho rosa! Topa dar uma palavrinha pra nós?

Se virou. Tava lá o maluco com o microfone na mão e o cinegrafista do lado. Equipe da TV Divisa.

- É nada! Só me faltava essa!

- Você veio pra ver o filme? É fã da Barbie? E esse sapatinho aí? Tem alguma história da Barbie com ele?

Aí o Ricardo teve que explicar pro rapaz que o sapatinho não tinha nada a ver com a Barbie, com o filme, que tinha entrado no Shopping só pra ir ao banheiro...

Contou que era pai de meninas, que sempre gostaram demais da Barbie e dos filmes da Barbie. Foi então que passou todo um filme na cabeça do Ricardo - um filme não, mais de vinte - todos os filmes da Barbie que ele assistiu com as meninas centenas de vezes.

E lembrou de todos eles, ali, na hora e enumerou todos em ordem cronológica.

Barbie - O Quebra-Nozes

Barbie - Rapunzel

O Lago dos Cisnes

A Princesa e a Plebeia

Barbie Fairytopia

A Magia de Aladus

O Diário da Barbie

Barbie Fairytopia 2 - Mermaidia

As Doze Princesas Bailarinas

A Magia do Arco-íris

A Princesa da Ilha

Barbie Butterfly - Uma nova aventura em Fairytopia

Barbie e o Castelo de Diamante

A Canção de Natal

Barbie Thumbelina (A Pequena Polegar)

Barbie e as Três Mosqueteiras

Barbie - Vida de Sereia

Barbie - Moda e Magia

Barbie e o Segredo das Fadas

Escola de Princesas

Um Natal perfeito

Barbie - Vida de Sereia 2

A Princesa e a Popstar

Barbie e as Sapatilhas Mágicas

Barbie Butterfly e a Princesa Fairy

- Sei que ainda tem mais nessa lista, mas é que as meninas foram crescendo, começaram a assistir os filmes da Pixar e da Dreamworks e a colecionar outras bonecas: as Monster High. Mas essa já é uma outra história...

- E a minha irmã, então? A Patrícia ficava doente toda vez que aparecia Barbie nova. Febre de quarenta graus! O médico cravou que era emocional. E era mesmo! Era só meu pai comprar a boneca que a menina sarava na hora. E foi casa da Barbie, carro da Barbie, tudo e mais tudo da Barbie...

O repórter ficou impressionado.

- Rapaz, como é que você consegue lembrar de tudo isso depois de tantos anos?

- Meu querido, esse é o tipo de lembrança que nunca se perde! Filme no cinema, boneca na loja! E teve ano que foram dois combos! E depois ainda tinha que comprar os DVDs! Que eram guardados na devida sequência numa caixa organizadora.

- E você ainda tem a cara de pau de me dizer que não é fã da Barbie? Bora gravar essa história? Preciso do seu nome completo, pros créditos...

- É Ricardo Sestim!

E o Ricardo contou, de novo, tudo o que tinha acontecido naquele dia pra chegar até a dar a entrevista pra TV.

Só que até agora não foi pro ar...

Mas serviu pro Ricardo se ligar que agora tinha um filme da Barbie pendente pra assistir.

- Acho que vou dar uma passada no cinema semana que vem...