SE NOS LEGARAM AS SOBRAS FAREMOS DELA UM BAQUETE

SE NOS LEGARAM AS SOBRAS FAREMOS DELA UM BAQUETE

JOE MARINHO

Ouvia quando era criança que o segredo do sucesso era levantar cedo, ir para a roça e trabalhar de “fio a pavio”, ou seja, o dia todo e assim chegaria o dia da colheita para a alegria do pobre. E era isso apenas, pois uns nasciam com o “destino” de ser rico e outros condenados a morrer na pobreza, ainda assim teria de agradecer a uma divindade pelo fato de estar vivo.

Sinceramente, eu não entendia aquela piada de mau gosto e nunca me conformei com esse discurso de destino determinante, predestinação. Afinal, quem era esse destino para mandar nas minhas vontades? Dessa forma vi meus dois avós morrerem arrebentados de trabalhar dia após dia naquele sol escaldante produzindo alimentos e nem o preço eles poderiam dar quando iam vender.

Um dia meu pai fugiu daquela situação, ele nunca foi muito amante aos trabalhos na roça, mas com pouca instrução restou-lhe apenas uma profissão de carpinteiro e uma casa coberta de lona em terreno invadido para criar seis filhos.

Sem recursos restou a mim e meus irmãos estudar até onde podia. Mas como a fome foi mais forte tivemos a necessidade de abandonar os estudos para ajudar no sustento como podíamos.

E aqueles discursos bonitos de democratização da educação me encantava, no entanto, esbarrava no “destino”. O maldito “destino” havia determinado que eu seria miserável e isso me doía, entretanto, mesmo com dor eu saí furando a bolha e me colocando em lugares onde jamais achei que um dia iria estar. E não foram lugares muito longe psrs quem não precisa lutar pelas oportunidades, mas a mim sim, cheguei em patamar inimaginável para quem foi relegado ao fracasso desde o nascimento.

Daquele meado da década de 1970 para cá muitas coisas mudaram, oportunidades surgiram, isso não se pode negar, todavia, para quem nasce no infeliz acaso do “destino” da pobreza muitas coisas continuam sendo negadas mesmo hoje no século 21. E por que estou falando isso?

Semana passada a Universidade Estadual do Amazonas (UEA) abriu a inscrição para o pedido de isenção dos seus processos seletivos de vestibulares. Vendo toda a burocracia que há resolvi ajudar meus alunos da escola onde trabalho e me senti um pouco na pele da/os discentes, lembrei-me de quantas vezes me foram negadas as oportunidades. Quantos documentos, quantas burocracias!

O pior é ouvir os discursos hipócritas dos slogans dos Estados, tanto federal quanto estadual de que temos uma democratização da educação. Como podemos falar em democratização da educação se grande parte dessas meninas e meninos não tem nem o que comer direito e ainda passar pelo constrangimento de ter que provar seu “destino” pobre?

Até brinquei com eles para descontrair dizendo que até para provarmos a desgraça da nossa pobreza temos que sofrer.

Enfim, sei que é necessário passar por um crivo esse pedido, visto não ter como todos recebam esse benefício da inscrição gratuita, porém poderia ser menos burocrático, visto termos hoje desde a nossa infância o cadastro geral em um sistema que parece não funcionar em alguns momentos e de propósito.

Na verdade, sabemos o porquê de tudo isso. Há o discurso da democratização, a indução de que todos temos as mesmas oportunidades (e a tal meritocracia) para quando as coisas não derem certo ter a quem culpar, o próprio aluno ou o tal do infeliz “destino”, a predestinação agostiniana/calvinista.

Olha, não deu certo por falta de esforço!

Como falta de esforço?

Infelizmente grande parte da população é levada a acreditar nesse discurso elitista midiático. E enquanto isso o mesmo grupo seleto que vem desde o período colonial brasileiro no poder econômico, político, religioso e ideológico continuam a prosperar sem ter mais que fazer grandes esforços, pois quanto herdeiros não precisam mais trabalhar para chegar aonde querem e nem se preocupar com o “destino”, pois já nasceram “predestinados” para usufruir dos privilégios legados a poucos.

Ah, mas somos guerreiros e guerreiros jamais desistem da batalha. Por isso nas minhas aulas eu sempre falo: se nos negam oportunidades, mas nos jogam as sobras, faremos com elas uma nova receita e quando eles vacilarem estaremos comendo um banquete com as sobras que nos deram.