FLANANDO PELO DOMINGO
Saio do supermercado com duas sacolas. Não me custaram os olhos da cara pois ainda os conservo, míopes e estrábicos, mas que me levaram um bocado de reais, ah levaram... “A vida anda cara”, sentenciou um senhor na fila. Não discordei. Contudo, como hoje é domingo, e os domingos não foram feitos para lamúrias e resmungos, paguei as frutas e o queijo minas.
Vou caminhando pela rua quase deserta. Passa um pouco do meio dia; nada mais natural que as famílias e os solitários estejam em casa, almoçando. Uma quadrinha de minha meninice vem à mente: meio dia, panela no fogo, barriga vazia... Era mais ou menos isso que estava escrito na cartilha que tinha lá em casa. Repleta de ilustrações coloridas e versinhos, eu a usava para brincar de escolinha.
Um quadro negro, uma caixa de giz, a cartilha... eu desempenhava o papel de professor. Um misto de Raimundo Nonato e Jirafales, sem bigode e charuto, meio exigente, meio jocoso. O mundo, contudo, deu suas voltas e cambalhotas: não fui ganhar a vida numa sala de aula.
Desço pela ruazinha paralela à igreja. O silêncio dominical convida a reduzir a marcha, observar. Tenho vontade de parar, deixar o sol de inverno me afagar o rosto... e, simplesmente, contemplar. Todavia, temo parecer ridículo. Eu, se visse alguém parado entre a São João Batista e o Paço Municipal, com as sacolas brancas do Zezinho à mão a mirar o nada... também o julgaria ridículo. Estúpido, com certeza. Sigo, pois.
A praça, atapetada de folhas avermelhadas, entrega-se ao sol, hospede tão raro nessa época. Um cão vadio lagarteia, o velhinho no degrau do coreto parece imitá-lo. Uma folha da amendoeira cai, lentamente, diante do meu rosto. Por um breve e fantasioso instante, me sinto num daqueles filmes americanos onde folhas caem, rubras e belas, entregando-se ao outono. Nessas ocasiões, dou razão à canção que diz: “no outono é sempre igual/as folhas caem no quintal”... Mas, sem quintal e outono cinematográficos, me contento em flanar pelo carpete escarlate da Praça 28 enquanto o sino anuncia meio dia e meia.
Um fato chama minha atenção: o busto de Celso Machado não está em seu costumeiro lugar. Quem levou o Celso, e para onde? É o que pergunto ao pombo que zanza no gramado. Sem resposta, encaro a pilastra despida. E, feito uma estátua mal ajambrada, me ponho a recordar a crônica que li mais cedo, antes de sair: “a história nos dias de hoje, mais do que nunca, é o assunto mais impopular, um assunto de gabinete por excelência, um apanágio de eruditos, que discutem, debatem, comparam e até hoje não chegaram a um acordo sobre as ideias mais elementares”.
Acho, Dostoiévski estava certo; e me entristeço pensando que, entre suas palavras e este rigoroso inverno, transcorreram mais de cento e setenta anos. Todavia, como não pretendo bancar o erudito, o pernóstico ou ser mais um chatonildo de plantão (repito, os domingos não foram feitos para isso), vou andando.
A boca pede um chocolatinho. Não devia, eu sei, mas cedo à tentação. Há quem se entregue aos deleites carnais, ao fumo desatinado, à jogatina inconsequente como Dostoiévski... eu me dou, de corpo e alma, ao prazer da mesa. Um dia, e esse dia há de vir, prestarei contas desse meu pecadilho. Por ora devoro, desabridamente, doces e chocolates.
Saio da drugstore (a cidade agora está très chic, tem até drugstore) levando mais uma sacola. A ditadura do plástico é terrível; mas, como não tenho vocação para rebelde e/ou subversivo, curuzes!, levo mais uma sacolinha para casa.
Os cones alaranjados sinalizam que as obras ainda não terminaram. Graças à Deusa Sensatez, demoliram aqueles quiosques horrendos que só serviam para descaracterizar o patrimônio histórico-arquitetônico, já tão descaracterizado, e atrair bebuns barulhentos à praça. Aplausos para o lúcido executor desse projeto!
Subo a ladeira do Conservatório. Tenho pressa de chegar em casa, me livrar destas sacolas e destes trajes de domingo, devorar meu Lacta. Apresso tanto o passo que, quando dou por conta, é tarde: o peloto de bosta já grudou no meu tênis... Me esqueço que os domingos não foram feitos para queixas e pragas e, feito um pirata, amaldiçoou o cagão que deixou este presente desgraçado na calçada.