UMA MOLDURA DEPOIS DA PANDEMIA...
A vida seguia e já fazia algum tempo desde a última vez que eles estiveram comigo.
Sem muitas queixas , não tinham muitas novidades "cinéticas" para me contar...mas algo era nítido: muito mais do que ali se via havia mudado.
Há pouco, resolveram se mudar para mais próximo dos filhos e netos, posto que moravam numa trabalhosa casa de campo numa cidadezinha nos arredores da cidade de São Paulo.
Três anos de Pandemia pareciam lhes encenar uma eternidade.
"Ah, minhas pernas já não aguentavam mais tantas escadas!"- disse-me ela com toda a resignação do mundo.
"ela reclama de dores o tempo todo"- afirmou o marido preocupado. "Por isso resolvemos optar por um apartamento".
O tempo, esse que tanto corre silenciosamente, sempre a fazer piruetas sobre todos nós, nitidamente já lhes minava as forças e agora seria necessário enxugar a vida.
Sim, com meus protagonistas do tempo, aprendi que ENXUGAR se trata dum exercício comum, um verbo obrigatório e inteligente àqueles que, algo esbaforidos mas plenos, conquistam milhas na caminhada.
De certa forma, tudo nos é emprestado pelo exato tempo necessário.
Ambos ali, um casal na metade da oitava década da vida, traziam na mochila, compartilhada num longo companheirismo, uma sensação hercúlea de "missão cumprida", porém, foi nos olhos dela que senti que algo precisava ser lido com maior acuidade.
"eu não vou aguentar..."- sentenciou-se ela, lacrimejando, quase num balbucio.
"Aguentar?"- perguntei, acreditando ser algo físico a ser sanado com um analgésico permitido à sua faixa etária.
'Sim, se ele morrer antes de mim eu não vou aguentar..."-me disse ela extremamente angustiada.
"eu já falei pra ela parar com isso! Desde a pandemia ela vem com essa conversinha! Sente saudade de tudo! Veja, o futuro a Deus pertence e a vida é assim mesmo, ara! Tudo muda! Um de nós vai partir primeiro e temos que aceitar!" argumentou ele com toda sua lúcida e pragmática propriedade cognitiva.
E eu ali, encantada, tentando ouvir e aprender o algo mais que, por desventura, pudesse não ser dito por ela.
E ela continuou.
"mas eu tenho a solução, e sei, tenho fé que Deus vai me ouvir, eu Lhe peço todos os dias!"
"Sim?"- continuei a lhe esticar meus ouvidos já meio preocupada...
"tenho fé que Deus vai ouvir minhas orações e levar primeiro o mais fraco . Eu não aguentaria ficar sem ele depois de sessenta anos juntos...seria como viver morta...ele não, tem uma força invejável."
Mais uma crônica ali se escrevia.
Parei para pensar no todo do hoje, inclusive no preocupante diagnóstico dela, embora diante daquela evidente e tão ansiosa confissão de amor e gratidão, de fato, uma manifestação tão genuinamente bonita.
A despeito das providências profissionais, sempre há algo a mais de aprendizado holístico que tanto nos enriquece nessas trocas humanísticas.
Quantas vezes ouvimos do outro algo que também é de nós...algo nosso e que para o qual não temos exatas respostas.
Algo que nem sempre está nos livros...algo que nem sempre é dito tão claramente letra por letra...porque nem sempre nos propomos a nos ouvir com coragem e acurácia.
Do que aprendi do tempo pelo tempo , a me ratificar as tantas belas lições dadas pelas tantas gentes, as de todos os dias, é que, na realidade, somos muito mais do que o tempo presente nos evidencia, através dos cenários exteriores projetados nos caminhos do futuro incerto.
O tempo tenta nos algemar por dentro. Cabe a cada um de nós negar as travas.
Quantas falsas performances...que tentam enganar as realidades pungentes.
Caminhamos como um "quadro em vintage continuo" a despeito das lutas para mantermos o colorido que pulsa dentro de nós.
Quantos penduricalhos adquiridos que nada valem perante a riqueza interior que nos delineia a essência das cores, a nos propulsionar pelas significativas veredas da vida.
A leitura dos nossos medos e fragilidades nem sempre é possível na agitação da vida moderna.
Hoje, há pouco tempo para o que é essencial. Pouco interesse em observar o outro , inclusive.
Na verdade, estamos todos sempre em busca de nós mesmos, para nos assentarmos ali, num lugarzinho seguro do ontem, onde nenhum perigo nos acessa para nos furtar o que nos é mais caro para prosseguirmos no sopro de vida...
Eis o nosso maior desafio pelo tempo.
Enfim, é preciso aprender a enxugar a vida. Ficar com o principal. Reciclar o que não tem mais importância.
Os demais acessórios conquistados...acreditem, constituem apenas uma frágil e decorativa moldura dos nossos mais profundos e indeléveis anseios.