“Seu” Ramos e seu perennis carpe diem
Por muito tempo, até a adolescência, sem ter lido os clássicos da antiguidade, acreditei que meu avô, ‘seu’ Ramos, fosse o criador do carpe diem. Aconselhava-nos, debaixo do velho pé de ficus, em Pilar, repetidamente, não esbanjar o tempo, aproveitar o máximo possível da vida, no bom sentido, porque a mais longa, mal vivida, torna-se a mais curta... Na verdade, aos da sua idade essa preocupação é preciosa: viver plenamente o tempo que lhes resta. Os jovens se mostram displicentes quanto ao futuro que lhes está próximo. Mas, quanto ao velho Ramos, o tempo, seja no passado, no presente ou no futuro, vale mais do que ouro, é coisa para não se esbanjar. Dever-se-ia sentir intensa vontade do tempo, sobretudo desejo de bem vivê-lo, como se estivesse disso faminto, como se expressa sobre a fome no dizer da auri sacra fames. Mesmo jovem, considere-se, insaciavelmente, o tempo, como a criança gulosa ganancia, ao mesmo tempo, os dois peitos da mãe, mesmo que não consiga mamar, nos dois seios, numa só vez.
Tal advertência para tirar proveito do dia se conjuga à de Virgílio: Fugit irreparabile tempus, o tempo foge de modo irreparável, como se fosse um copo d’água entre os dedos da mão. Foge, e quanto mais se distancia, mais aproxima a vida da morte. Por isso, antecipando-se ao ‘seu’ Ramos, Horácio, dezenas de anos antes de Cristo, celebrizou a frase carpe diem, no primeiro livro de Odes, onde também enfatiza à amiga Leucónoe: “Colha o dia e confie pouco no amanhã”. Talvez se otimize a certeza, como canta o samba de Chico Buarque, de que “amanhã será outro dia”... Nessas incertezas, meu avô não abandonava uma boa circunstância: “Quando passar uma mulher bonita não pare de olhar pra ela, continue olhando, pode ser que ela passe e não volte mais. Mesmo que ela finja que não percebeu, mente, mulher sente admiração, na pele, como se fosse uma flechada”.
O tempo, de que ele falava, não deve ser vazio de amor, porque o amor tem sido o ponto mais alto da felicidade e não há havido feliz aproveitamento do tempo sem amor. Nesse sentido, o meu ex-professor, filósofo e poeta, Daniel Lima apregoava em suas aulas: “Não cuides nem das horas, nem dos anos, mas dos instantes e do agora, cuida de cada um deles. Vive-o todo, como se único fosse, ou o derradeiro”. Esses significam passos do nosso caminhar, cujo chão sofre limites, tem um fim e passa de um modo veloz. E quanto mais veloz, lembro, mais aproxima a vida da morte. Portanto, antes dela, vivamos e plenamente o nosso agora.
Não nos surpreende mais experimentar o desaparecimento de amigos e amigas, cujos legados a amizade nos responsabiliza de carregá-los, até o fim do caminho. Deixaríamos seu alforge ou bornal, desprezado, à beira da estrada, sem trazer conosco suas lembranças? Nessa responsabilidade, assim se tratam os pedaços das amigas e dos amigos que já se foram.
Este agora pode ser nosso último dia, que deve ser vivido plenamente, então valorize-se o que falta, sentimentos, o que ouvimos, o que falamos ou o que vivenciamos. Tudo que for cabível no aproveitamento desse dia. Porque, quando o tempo anda, não volta atrás, sobretudo porque a vida também é cheia do que falta, de separações e de despedidas. Enfim, carpe diem, pois não existe perennis carpe diem, esses dias são contados...