Natureza-morta
Fui até o computador para escrever qualquer coisa, um mero exercício, e me distraí com uma natureza-morta. Não era um quadro, mas uma cesta de frutas bem na minha frente. Não sei se foi o melão ou se foram as maçãs que chamaram minha atenção. Quem estava olhando quem? Acho melhor esclarecer que foram elas, as frutas na travessa, com toda sua exuberância, que tiraram minha atenção e me desviaram do meu objetivo. Distração é uma coisa terrível, esqueci sobre o que pretendia escrever. Porém, se fosse um pintor, o quadro estaria pronto.
Mudei o foco e resolvi observar melhor as frutas. Laranjas redondinhas, variando entre o verde claro e o alaranjado típico dessa fruta indispensável à nossa dieta. Juro para vocês: elas brilhavam. Abacates e goiabas esbanjando vitalidade. Mangas roxinhas, quase maduras, e bananas de um amarelo vivo de dar água na boca. Bastava descascar e dar umas mordidas. Olhar as mexericas cascudas me fazia indiscreto a imaginar seus gomos macios e suculentos. Os maracujás amarelinhos, embora enrugados, alardeando sua doçura, prenhes de sementes pretinhas. Vários limões completavam o arranjo. Pequenos e simpáticos, tentavam esconder seu sumo ácido; fosse eu mais novo, já estaria tramando uma caipirinha, mas pensei logo foi numa salada de frutas. Não posso dar mau exemplo.
Nunca entendi direito essa história de natureza-morta. Dizem que esse tipo de arte — pode ser um quadro, desenho ou fotografia — visa captar as imagens em suas várias arrumações, modulações, enquadramentos, cores, texturas, iluminação e por aí vai. O nome vem da representação de objetos inanimados, não só frutas ou flores, mas livros, objetos aleatórios, garrafas etc., até carcaças de animais, como fez Goya, o pintor espanhol, que pintou peixes dourados de olhos angustiados. O pintor barroco Caravaggio pintou naturezas-mortas; Monet, Renoir, Cézanne e Van Gogh também. Picasso e Frida Kahlo inovaram o gênero, e os brasileiros Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti não ficaram para trás.
Ah, para os mais exigentes: natureza-morta é palavra composta, substantivo feminino, e escreve-se com hífen, mudando o sentido literal (sem hífen temos um substantivo e um adjetivo). Não se trata da morte da natureza, mas de um gênero específico na história da arte. Como não sou pintor, achei que seria interessante criar uma natureza-morta na forma de crônica, transformar uma cesta de frutas num texto literário.
Natureza-morta? Recorrendo à dúvida por princípio, decidi contradizer o conceito instituído e indagar: e os bichinhos da maçã? E as mosquinhas que ficam rondando as bananas? Tínhamos ali, naquela cesta, grande riqueza, diversidade, conteúdos em efervescência, num apanhado geral: vida.
Por falar em morte da natureza, me lembrei do desmatamento, das queimadas, dos agrotóxicos. Afinal, aquelas não eram frutas orgânicas. O que era doce se tornou amargo. Embora contrariado, estava ali a inspiração para um texto indignado, imprevisto, ocasional.