Minha rebimboca
- “Tá fazendo um barulho danado do lado esquerdo, bem embaixo de mim. E do lado direito tá esquisito...”.
- “Dá pra você me dizer com mais detalhes o que significa estar esquisito?”.
Eu observei que tio João, mecânico de carros, estava fazendo comigo uma anamnese, da mesma forma que eu faço com meus pacientes antes de os examinar.
Anamnese - do grego ana (trazer de novo) e mnesis (memória). Em Medicina quer dizer uma série de perguntas estrategicamente colocadas para um paciente, a fim de se conseguir o máximo possível de dados sobre suas queixas e começar a traçar um diagnóstico.
Diagnóstico: diagnosticu (“dia” em latim significa “através de, durante, por meio de”. Gnosticu significa conhecimento). Gnose em grego é substantivo do verbo gignósko (conhecer), ou seja, sabedoria, conhecimento.
Conhecer primeiro para cuidar depois. Pura filosofia isso...
Meu tio, vendo que daquele mato não saía cachorro, tomou a decisão de ele mesmo descobrir o que acontecia com o carro, como se eu fosse uma paciente que não pudesse se comunicar, ou melhor, explicar o que está sentindo, tal qual é uma criança.
- Pisa no acelerador!!!”.
Vrum... Vrum!!!! Vrr....
- Pára...
- E aí? O que é?
Ele limpava as mãos, enquanto mexia no motor, sem dar a menor bola para o que eu perguntava. Depois deitou no carrinho de rodas e lá foi para baixo do carro.
Eu só via as pernas dele e fiquei imaginando que por muitas vezes me sinto como um mecânico de carro ao examinar alguém, só que não preciso, graças a Deus, deitar por baixo das pessoas...
- “Me passa aí a chave de fenda; me pega aquela estopa e a graxa...”.
Eu me sentia como minha secretária ou minha instrumentadora: Não sabia bem o que acontecia, apenas fazia exatamente o que ele me mandava.
- “Tinha uns parafusos soltos.” (Isso eu vejo o tempo todo no meu trabalho...). “Os parafusos foram apenas um detalhe. Este problema eu resolvo agora mesmo. Os outros vão demorar um pouco”.
- “Que?!”. Tem mais de um problema?!”.
Aí, novamente percebi o quanto a profissão dele é igual à minha. É comum a gente ouvir da pessoa uma coisa, observar outra e esta pessoa complicar de outra totalmente diferente. É o que dizemos: paciente multifatorial ou multicêntrico, com várias doenças ou anormalidades ao mesmo tempo.
Etiologia é justamente isso: ethos, do grego, quer dizer "causas" ou causas diferentes". Logos é estudo. Então, era preciso o estudo das etiologias (várias causas) dos defeitos no meu carro.
- “Vamos dizer que seu carro seja um tanto quanto usado...”. Ele estava sugerindo em outras palavras que ele era velho, cacarecado, pitimbado.
- “Doutor (quer dizer, tio), o que esta droga de carro tem?”.
- “Acho que é uma homocinética, mas não gosto de achar nada sem avaliar com cuidado. Preciso ver direito. Com você me enchendo o saco vai ficar difícil, até porque, mesmo eu explicando, você não ia entender nada, que eu sei...”.
- “Tá, mas é difícil, é grave?”.
- “O problema, não. Vai ficar um pouco caro a peça, mas bem mais barato do que se ela soltar a roda do teu carro em movimento, o que você poderia pagar com a vida...”.
Não dava para separar a medicina daquele papo... Só que, no meu caso, não daria para dizer ao paciente que ele estava ferrado. Esta é a condição sine qua non para se cuidar de alguém: ter esperança de curar ou MELHORAR alguém.
Em minha profissão não somos obrigados a fazer milagres. Usamos o que a ciência nos oferece (a ciência e as condições para com ela trabalhar), unimos ao nosso raciocínio e bom senso (coisa que nenhum livro ensina ou um computador pode imitar) e agimos.
Tio João ainda tentou me mostrar como funcionava “minha” homocinética, mas fiquei perdida. Até pensei em trocar de carro, pois este estava me dando muitos problemas - a diferença básica entre a vida humana e a máquina é que não se troca nossas vidas por novas.
- “Olha lá, tio. Dá um jeito legal nisso. Não vai tapear, não...”.
Ele disse que eu estava exagerando a coisa e que ele não ia se aventurar e dar uma de herói - apenas fazer o que tinha que ser feito naquele caso e ponto final.
- “Você não tem opção. Confia ou não confia em mim?”.
Logicamente eu não duvidava de sua capacidade profissional, nem iria procurar outro mecânico pra ouvir uma segunda opinião (se bem que eu poderia, tanto quando um paciente). Ele era seguro do que falava e eu o tinha escolhido para resolver minhas encrencas automotivas.
Eu disse:
- “ É a famosa rebimboca da parafuseta... Ninguém sabe o que é, mas é ela sempre que dá o problema... Isso de ficar sem carro vai atrapalhar a minha rotina...”.
- “Po! Pega táxi, pega ônibus, anda a pé!”.
Eu me imaginei falando para um doente as alternativas para se adaptar à sua nova condição, sendo ela provisória ou definitiva. Sempre há um jeito de se ajustar às adversidades da vida. Naquele dia, portanto, era a minha rebimboca que passava por uma reforma. Quantas vezes a gente não tem como reformar nossa rebimboca, não é?
De repente na vida da gente alguém diz: “Você vai ter que dar uma parada. Seu corpo não pode acompanhar seus desejos ou voltar ao passado. Chegou a hora de uma guinada e botar pra balanço, corrigir o que se pode corrigir e conviver com o que sobrou”.
Parecia drama demais? Mas, não era. Só em pensar que eu não teria grana para um carro novo e teria que me virar com o que tinha; só em imaginar que uma rebimboca poderia ser o meu coração ou meus membros, me fez sentir como aquele carro velho. E reflitam profundamente que rebimbocas com defeitos existem até em carro do ano!
- “O senhor garante que esta peça vai resolver meus problemas, ou melhor, os problemas do carro?”.
- “Olha, sobrinha, eu não garanto nada, mas eu acredito firmemente que vou descobrir tudo que o peteleco tem (o carro só funciona assim, aos petelecos) e vou dar as soluções para você. Os outros defeitos eu tentarei também consertar ou contornar da melhor forma possível...”.
O meu mecânico parecia meu médico. Ele não me dava certeza absoluta de nada, definindo bem o quanto o médico tem que se posicionar diante de alguma conduta. Ele tem que tentar explicar o que o doente tem e chegar ao nível de compreensão dele. Caso não o consiga, tem que apelar para a mútua confiança. Ao final, tem que mostrar que tudo é falível, mas que, dependendo da experiência do profissional e da participação do doente, seguindo as orientações recomendadas, além do consentimento para tal ato, chegarão ao melhor final.
Meu tio fez um bom prognóstico para o carro e para mim.
Pronóstico: parecer do médico a respeito da evolução provável de uma doença, a previsão da resolução de um caso. Ou seja: conhecer adiante, saber o que acontecerá, mediante experiências com certa patologia e com a situação do paciente.
Com frequência a gente tem que ser honesto e duro: “Não sei... Tudo pode acontecer.” Esta é a difícil tarefa de quem lida direta ou indiretamente com vidas: chegar a hora de dizer dignamente e com toda a certeza do mundo que qualquer coisa pode acontecer, e sem parecer inseguro ou imperito.
Aqui estou falando do verdadeiro médico. Não dos que estão exercendo a profissão errada, mas daquele que sabe agir - ou, pelo menos, tenta.
Minimizar uma informação ou até mentir para o próprio bem do doente, principalmente quando não se tem nenhuma outra saída, por vezes é necessário. Entretanto, o paciente que responde por si tem o direito de decidir pela sua vida e tem o direito de escolher. O médico tem o direito de escolher tratar dele ou não, de concordar com ele ou não. Nem tanto, nem tampouco. Quando se chega a um pacto, quando a vida de um está nas mãos do outro, o que resta a fazer é amenizar palavras e fazer o que tem que ser feito. Por isso não é desonesto afirmarmos que temos certeza de que VAI DAR CERTO alguma intervenção ou conduta, mesmo sem o sabermos.
- “Sai fora e agora me deixa trabalhar. Vai se virar até eu te ligar”.
Eu saí à francesa porque ali eu sobrava e nada poderia fazer.
Não era o caso da rebimboca, da parafuseta, muito menos da homocinética, mas em muitos momentos e a esta hora alguém olha para seu mecânico, seja do carro, seja do corpo, e com medo pergunta: “ Será que tem jeito?”.
Leila Marinho Lage
Rio, 19 de dezembro de 2007
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