SUPERFICIALIDADES.
Não há nada mais devastador do que ser ignorado, de não ter atenção e apreço dos seus pares, daquelas pessoas amadas por você, no entanto, o retorno desse amor é mínimo, quase escasso a meu ver, para não dizer quase nulo. A sensação é de uma faca atravessando o peito lentamente, essa dor miúda, crescente é por demais agressiva, mata aos poucos. Essa experimentação de morte lenta, vagarosa, é quase insuportável, às vezes tenho vontade de gritar, extravasar, de fazer mil loucuras, mas quando você acorrenta tais sentimentos no calabouço do seu coração, este sentimento se transforma em um monstro corroendo e destruindo tudo por dentro.
Mas não é esse o assunto que eu quero abordar, passemos então ao tema secundário da crônica deste domingo.
Fim de tarde, jardim São Guilherme, um encontro inesperado entre dois velhos amigos.
— Olá! Gilmar! Quem é vivo sempre aparece, tudo bem com você?
Gilmar se assusta com a voz forte e grave do amigo, inicia-se o diálogo.
— Ô Carlos! Quanto tempo meu camarada! Você sumiu.
Parados em frente a padaria Bruna, entre a porta de entrada e a calçada, os dois não se dão conta que deste ouvinte atento.
— Estou sempre por aí, e você, está fazendo o que dá vida homem?
— Depois que eu saí da empresa fiquei um ano parado, voltei a trabalhar no mercado faz uns três anos, estou novamente exercendo a minha antiga profissão. E você... O que faz da vida? Aposentou ou está na empresa ainda?
Gilmar trabalhou na mesma empresa que Carlos, porém, foi riscado sumariamente da folha de pagamento há seis anos atrás, não por ser um funcionário ruim ou qualquer coisa do tipo, muito pelo contrário, era excelente, contudo, ele foi demitido por questões pessoais de seu chefe que tinha desafetos por ele, havia um tom de dor e raiva nas palavras de Gilmar.
— Ainda não me aposentei, faltam uns três anos, eu continuo na empresa, mesmo setor, mudou bastante do pessoal da velha guarda ficou eu e o Gerson.
— É... O tempo voa meu amigo. Eu estou com o processo correndo contra a empresa, lembra? Já faz uns anos essa labuta.
Na época em que trabalhava na empresa, Gilmar teve que passar por uma cirurgia na coluna, colocou parafusos e hastes metálicas para descompressão das vértebras lombares L3 e L4. Exatamente, um ano e três meses depois da cirurgia, já readaptado no setor, ele foi demitido. Quando saiu da empresa, não teve dúvidas, processou, porém, processos trabalhistas no Brasil caminham com passos de uma velha tartaruga.
— Caramba! Me lembro que você operou, colocou parafuso, ainda dói muito?
— Desde que eu fiz a cirurgia nunca parou de doer, essa é a verdade, às vezes, menos, outras mais, a gente aprende a conviver com a dor. Quanto ao processo... A justiça Brasileira já não é das mais rápidas, daí veio a pandemia e atrasou ainda mais o andamento dele.
— Nem fale dessa pandemia, peguei duas vezes o vírus. Quanto ao processo, fique em paz, vai dar tudo certo, em breve você retorna na empresa.
— Tomará amigo, embora eu não tenha lá muitas esperanças. Rapaz, por falar em pandemia, eu que peguei três vezes o vírus, depois de tomar quatro doses da vacina, não me adiantou foi é de nada ter tomado tanta vacina, fiquei é todo ferrado.
— Essas vacinas... Bom, a minha tia tomou as duas doses, não saía de casa para nada, pegou novamente e acabou falecendo.
— Eu só tomei mesmo porque fui obrigado por causa do trabalho, eu também perdi um tio para o vírus.
— Fazer o quê...
— É osso, parece que somos vítimas de um jogo.
— Jogo em que somos peões...
— Hoje em dia ficou complicado falar disso.
— O problema é que não existe reação, apenas acomodação. Se todos reagissem...
— Assim esperamos, mas, a coisa está a passos de tartaruga, tudo é muito complicado.
— Se não fizerem nada vai acontecer igual lá fora, nos Estados Unidos, olha o exemplo...
— É o que sempre digo amigo, eu canso de falar... O papo está bom, mas, estou atrasado, tenho que trabalhar daqui a pouco, até mais ver.
— Vai lá amigo, bom trabalho para você, eu também estou atrasado, até mais…
Os dois amigos se despedem, uma chuva fina começa a cair, Gilmar vai para um lado e Carlos para o outro. Morando no mesmo bairro há vinte anos, era a segunda vez que se encontravam ali, na padaria que todos os dias os dois vinham, só que em horários diferentes. Depois de anos, se reencontraram, uma conversa superficial, e continuaram sem saber que um mora próximo ao outro, sem saber exatamente nada da vida do outro, se tinham filhos, cachorro, se continuavam casados.
Conversa de homens é assim.
Quando a mim, sou apenas um observador da vida alheia, mostrando nesta despretensiosa crônica, o quanto nós homens somos tendências à superficialidade. Estou parado na fila do caixa da mesma padaria, sou amigo de Carlos, conhecido de Gilmar, trabalhei na empresa que um trabalha e no mesmo supermercado que o outro. Hoje trabalho por conta, entre os trabalhos de que faço está a escrita. Me tornei nessa silenciosa sombra à espreita, registrando as relações humanas e suas superficialidades.