Crônicas Médicas - Quanto custa um sorriso?
Certa vez ouvi na voz de Daniel a seguinte pergunta “quanto custa pro verdadeiro sorriso brotar do coração?”. Assim como ele na canção, muitas vezes me fiz o mesmo questionamento.
Especialmente, e infelizmente, no dia-a-dia da área da saúde, a alegria pode se mostrar como situação pontual em meio a incontáveis momentos de dor, dificuldades, medos e afins. Aprendemos, dessa maneira, a valorizar cada sorriso que vemos surgir no rosto de nossos pacientes.
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Rodando na pediatria, tive a oportunidade de “adotar” uma paciente de três anos de idade, recuperando-se de uma pneumonia grave, com necessidade de fazer drenagem de tórax. Nos primeiros dias em que a acompanhei, praticamente restrita ao leito e com uma mangueira pendurada na lateral do tronco, suas boas-vindas para mim não foram nada amistosas. Sempre chorosa e de cara fechada, avaliá-la era um grande desafio.
De pouco em pouco, retirando-se o dreno, entendendo seu relógio biológico e sua oscilação de humor, consegui me aproximar e conquistar sua confiança. Assim, ainda que sofresse para conduzir o caso em alguns momentos, com a ajuda dos pais e uma boa relação se estabelecendo, conseguia fazer tudo o que era preciso.
Certo dia, em uma tentativa de facilitar o trabalho, botei um cachorrinho de pelúcia no bolso do jaleco, esperei que ela tomasse o café da manhã e fui realizar a evolução médica daquela manhã. Minha simples entrada no quarto provocou o início de pequenas reclamações. Comecei a consulta, que corria bem, mas, em dado momento, o resmungo virou choro e o exame se tornou mais complicado.
Nesse momento, tirei o cachorrinho do bolso e tentei chamar a atenção da garotinha. Ainda relutante, ela olhava de canto de olho para a pelúcia, indecisa sobre interagir comigo. “Você tem cachorrinho em casa?”, perguntei. Ela afirmou com a cabeça. “Como ele se chama?”, continuei o assunto, mas ela se virou para o lado e choramingou.
“Conta para o tio como elas se chamam”, interveio a mãe. “Princesa”, ela respondeu.
“Que nome bonito, é uma princesa igual a você então!”, reagi. “E a outra?”
Ela respondeu, mas com a voz muito abafada que não consegui entender. Questionei novamente qual era o nome. “Princesita”, disse a mãe. “Princesa e Princesita”.
“Olha só, as duas são iguais a você então”, comentei.
A partir disso, estabeleci uma relação muito mais amigável com ela. Inclusive, na manhã seguinte, desenhei uma garotinha brava para ela como lembrança do que se passou.
Todos os dias, retornava para reavaliá-la com o cachorrinho no bolso, encontrando, também, o desenho pendurado ao lado da cama. Fazia os exames, conversava, tirava as dúvidas que os pais apresentavam e retornava no dia seguinte para repetir o ciclo, que se mostrava próximo do final, já que a programação era de alta dali poucos dias.
No entanto, no dia anterior à despedida do hospital, uma febre repentina mudou nossos planos. Fizemos medicação para controle da temperatura, em vão, enquanto víamos um incômodo na garganta se aproximar. Tratava-se de uma inflamação na garganta? Outra infecção? Piora da pneumonia? Solicitamos exame de sangue e um novo raio-x.
No dia seguinte, cheguei ao hospital e me apressei para checar os resultados. O raio-x evidenciava clara melhora da pneumonia. Assim, a febre não era decorrente do quadro anterior; era algo novo. Abri seus exames de sangue: hemograma com padrão de infecção viral e marcador inflamatório levemente aumentado. Assim, bastava tratar os sintomas, mantendo-a internada, esperando a evolução natural, com tendência de resolução rápida.
Contudo, a piora clínica não parou por aí. Ainda naquela manhã, manchas vermelhas começaram a aparecer por todo o corpo da garotinha, coçando bastante e gerando muito desconforto. Mais uma vez, o quadro nos fazia pensar em infecção viral. Seguimos com a ideia de tratar os sintomas e observar.
Na manhã seguinte, logo que cheguei, perguntei à mãe como a filha estava e a resposta não me animou. A febre seguia alta e difícil de controlar, e aquele prurido generalizado com vermelhidão também não havia cessado. A única nova informação, importante para a conduta do caso, foi o fato de que a mãe percebeu piora da coceira após aplicação de um antibiótico que ainda era usado em decorrência da pneumonia. Sempre durante uma nova dose a coceira surgia, sumindo algum tempo depois do fim da medicação.
Dessa maneira, conversei com a residente responsável pela paciente e me comprometi a acompanhar a próxima aplicação do antibiótico. Dito e feito. Tão logo se iniciou o remédio, a vermelhidão piorou, a coceira surgiu e o desconforto tomou conta da paciente. Informei à equipe, concordamos em suspender o antibiótico e observar a evolução do caso por um dia completo, esperando melhora do quadro.
Ainda naquele dia, cerca de meia hora depois de suspender a medicação, passei em frente ao quarto e vi a garota no colo da mãe, ainda reclamando de coceira. Entrei, com o cachorrinho de pelúcia no bolso, e tentei conversar com ela. Com lágrimas nos olhos e nenhum sorriso no rosto, ela só confirmou que estava muito incomodada. Tentei chamar sua atenção com a pelúcia e com um de seus brinquedos, mas não obtive sucesso. Então tive uma nova ideia. “Quer um novo amiguinho para brincar com o Amarelinho?”, perguntei. Amarelinho era o gatinho de pelúcia que ela tinha. Ela fez sinal de positivo com a cabeça.
Fui até minha mochila e abri uma sacola cheia de fantoches que resolvi levar para o hospital. Procurei algo amarelo para combinar com o Amarelinho e voltei para o quarto com o fantoche de um galo.
Foram necessários cerca de dez segundos para mudar o seu semblante: de chorosa e incomodada para sorridente e entretida. O lúdico sempre encanta, pensei comigo. Rapidamente ela tomou o fantoche de mim e o colocou em sua mãozinha pequena. “Você quer um amigo para ele?”, perguntei. Mais uma vez ela respondeu afirmativamente.
Voltei novamente à mochila e peguei outros três fantoches: um dente (ela não queria escovar os dentes), uma galinha e um cachorro. A interação foi um sucesso. Em seu rosto, não se via mais dor, a coceira havia caído em esquecimento e o desconforto tinha sido substituído por alegria gratuita, ainda que, talvez, momentânea, mas, definitivamente, significativa.
Por alguns minutos, segui com ela, brincando, até que o serviço me chamou de novo e precisei deixar o quarto. Recolhi os fantoches e combinei de brincar novamente com ela na manhã seguinte, mas, dessa vez, com uma arara, atendendo ao seu pedido. Deixei o quarto com um agradecimento da mãe por tratar sua filha com carinho.
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Ao final do expediente, já a caminho de casa, coloquei no celular a música na voz de Daniel, “Pra ser feliz”. No momento do refrão, respondi para mim mesmo: “O verdadeiro sorriso não custa nada. Ele, na verdade, paga, e muito bem. Plantar alegria é ter a certeza de colher sorrisos. Quem doa felicidade recebe tudo de volta em novas doses de alegria, num ciclo que tende a se repetir”.