REENCONTRO COM O MEU GAROTO...
Quando voltei para o Maranhão, em 1967, para ingressar no Banco do Brasil, eu deixava para trás, no Rio de Janeiro, um casamento penosamente desfeito, um filho de 2 anos e uma fama pouco recomendável, pois eu tinha me viciado numa anfetamina chamada Dexamil, cuja dependência, além de me favorecer comportamentos desequilibrados, quase me levara à loucura e à morte prematura. Eu precisava de tratamento psiquiátrico, mas a atitude desumana e cruel de uma cunhada a quem eu tinha amparado num momento difícil da sua vida e o gélido desprezo da mulher com quem eu tinha casado acarretaram acontecimentos de triste memória num lar tão tumultuado e inóspito que, se eu me considerasse chefe de família, isso soaria apenas como uma piada de mau gosto. Depois que fui embora, essa pérfida cunhada e essa esposa tipo Pilatos de saia, talvez para justificar as suas cruéis e desumanas atitudes, trataram de montar uma narrativa tão distorcida da verdade dos fatos que a minha lembrança, naquela família e seus amigos, passou a ser evocada com as cores de ogro, louco, celerado etc.
O tempo passou e eu, no Maranhão, caí no redemoinho absurdo do alcoolismo e somente em 1978, já em franca recuperação desse terrível mal, desenvolvendo sólida carreira bancária e prestes a me graduar em Letras, pela UFMA, me senti com coragem suficiente para rever o meu filho no Rio de Janeiro, aquele garotinho que eu lá deixara, após um molhado beijo de adeus.
No avião que me levava de volta ao Rio, depois de 11 anos, dúvidas e sofismas me assaltavam. Não conhecia o menino, nem ele, a mim. Eu tinha feito algumas cartas para o menino, assim que ele completara sete anos, mas, com certeza, a mãe não o deixara ler. E quem sabe não teriam dito ao menino que eu estava morto? E como a Telma e os seus parentes iriam me receber, principalmente ela, a esfinge?
Enfim, cheguei ao Rio de Janeiro, 11 anos após ter saído de lá escorraçado como um cão lazarento. Com muita emoção, desci na estação de trem de Campo Grande. Quantas vezes, pela manhã, na década de 60, esperara o trem naquela plataforma e quantas vezes descera por ela, na volta... Onze anos tinham se passado! Entrei timidamente na rua onde morara e caminhei muito nervoso, intimidado. Tinha receio de ser mal recebido, de ser destratado. Eu tinha sabido que a fama que se espalhara a meu respeito não era a de um homem que chegara ao desespero por causa de sua dependência química, mas sim a de um desvairado e cruel indivíduo. Nessas circunstâncias, eu tinha razão em estar apreensivo. Quando entrei na rua, distingui, ao longe, encostado no portão da casa, um garoto branco e alto. Não havia dúvida: era ele, o meu filho! Sua avó, Dona Áurea, se encontrava ao seu lado. Eu me aproximei dos dois com o coração nas mãos:
- Você é o Ricardo. Está um belo garotão. Dê-me um abraço, sou seu pai! Abraçamo-nos, emocionados. Conversamos alguns minutos e depois caminhamos pelo terraço até chegar à casa onde eu vivera dois anos de um atormentado casamento.
Telma estava na sala, de pé, rosto fechado, olhar frio e duro como sempre. Ao seu lado, de roupa branca, parecendo um médico, havia um homem. Depois de um “olá” que mais parecia um escarro, Telma falou:
- O que é que você veio fazer aqui?
- Vim ver o meu filho.
- É muita coragem sua, voltar aqui depois de tudo!
- Que tudo? Não matei nem roubei ninguém! Tenho o direito, por lei, de visitar o meu filho.
O homem de branco interveio:
- Escute, eu moro com a Telma. Quando soubemos que você estava no Rio e que iria voltar aqui, como, de fato, voltou, estive pensando em solicitar proteção da polícia. Desisti disso porque possuo um revólver e posso proteger a minha família.
- Proteção da polícia, revólver? Que exagero! Só quero falar com o meu próprio filho, nada mais do que isso!
- É, mas não tenho boas informações a seu respeito. É um drogado, não? Que faz no Maranhão, atualmente?
Intimamente fiquei irritado com o interrogatório do sujeito. Não tinha o direito de pedir-me explicações nem de fazer ameaças. Mas uma discussão ali, naquele momento, seria absolutamente desastrosa para as minhas pretensões de me reconciliar com o meu filho. Mantive a calma:
- Não, fui viciado numa anfetamina chamada Dexamil. Mas não a uso mais. Sou gerente de agência do banco BEM e faço a Faculdade de Letras. Se duvida, veja estes documentos.
E mostrei-lhe a minha identidade funcional do banco e a minha carteira de estudante universitário. Sentia-me humilhado, mas era preciso passar por essa provação para continuar a ver o garoto. O homem devolveu-me os documentos ainda com a cara amarrada:
- Sou médico e embora não seja psiquiatra tenho visto raríssimos casos de recuperação de toxicômanos. O cara que se vicia numa droga não a larga nunca!
- Desculpe, mas está equivocado. Uma transformação radical na personalidade do doente, acompanhada ou não de tratamento psiquiátrico faz toda a diferença. Garanto que não tomo o Dexamil desde que saí do Rio há onze anos. Mas, escutem, não há por que estarmos aqui, levantando dúvidas, formulando hipóteses ou lembrando o passado. Eu posso mudar o meu presente e esperar o futuro. Mas não posso mudar um só minuto do meu passado. O que passou, passou. Vão me deixar visitar o meu filho ou terei que recorrer à Justiça?
- Vou conversar com a Telma sobre isso. Onde você está morando, aqui no Rio?
- Estou hospedado num hotel, no Catete. Aqui está o telefone e o número do quarto. - Está bem, eu ligo para você.
Depois de abraçar o meu filho, voltei para o hotel. Estava rangendo os dentes de humilhação, de ódio! O que é que eu tinha feito em 1967 para aquele pessoal? Tinha me viciado numa anfetamina, tinha perdido o controle sobre a minha vida, rolara pela sarjeta da infame dependência! Eu tinha sofrido mais que qualquer um deles!... Por outro lado, doei sangue para um dos filhos da minha cunhada, fui resgatar os seus filhos quando o pai os sequestrou e a protegi, juntamente com os filhos, colocando-os todos na minha casa, dando-lhes agasalho e comida! Por que tinham me pintado como um ser perverso, de alta periculosidade? Sabia que a Telma era uma barra de gelo em pessoa e que a sua irmã, Aurinha, era maquiavélica e inescrupulosa, mas era difícil acreditar que as duas tivessem distorcido os fatos de uma maneira tão aberrante!
Desabafei a minha revolta com a minha mãe, que procurou acalmar-me:
- Não se preocupe, meu filho. Eles vão entender que você, naquela época, estava descontrolado, mas não cometeu nenhum crime. E que você se recuperou, é um outro homem.
- Esperemos que sim, senão vai dar uma encrenca dos diabos porque não vou ficar de braços cruzados enquanto eles me impedem de ver o meu próprio filho!
De noite, para minha surpresa, o Dr. Canuto, o novo companheiro da Telma, telefonou-me:
- Antonio, olhe, depois que você saiu fiquei analisando mais calmamente a situação. Também sou separado, tenho filhos, um dia poderei enfrentar a mesma situação pela qual você está passando hoje. Acho que exageramos, que fomos muito duros com você. Quem nunca errou na vida que atire a primeira pedra. Não me pode enganar, pois sou maçom e em menos de dois dias eu poderei, se quiser, levantar toda sua vida pregressa, aí no Maranhão. Entretanto, percebo que está sendo sincero e que ama seu filho. Pode vê-lo quando quiser.
Fiquei exultante, agradecido a Deus. O homem, no fundo, era um bom coração.
- Obrigado, Dr. Canuto, muito obrigado.
Passei a visitar o menino, duas a três vezes por semana. As minhas férias chegaram ao fim e voltei para São Luís. Mas voltei realmente feliz porque houvera restabelecido o liame emocional de pai para filho, entre mim e Ricardo. Houvera também transmitido a ele uma imagem segura de recuperação e de prosperidade que, com certeza, o deixou orgulhoso.
Lembro-me de que, uns dias antes de voltar para São Luís, eu lhe dei um radinho portátil que o deixou muito contente. Anos mais tarde, me confessaria que aquele radinho tivera uma vida extraordinariamente longa. Na nossa despedida, na calçada em frente à estação de trem, eu lhe disse:
- Ricardo, meu filho, estou contente por tê-lo reencontrado. Você é um bom menino, um bom filho.
- O senhor também é um homem bom, meu pai.
Assim, tendo reencontrado o meu garoto, em paz comigo mesmo, tomei um avião e voltei para São Luís do Maranhão.