Ficcões Heurísticas: Anotações de um extemporâneo III
...os mais raros, vistos pelos grandes olhos da massificação como fracos e inúteis, excrementos e procrastinadores por excelência - e tinham mesmo todos esses atributos - sem concluir nada sentiam-se incapazes de se adequar a seu tempo, e justamente isto era sua força: nem abdicavam de todo, nem conquistavam nada - fosse no reino dos sentimentos, fosse na ação. Também tinham o vigor inflamável, uma jovialidade transbordante, por isso suportavam o conflito, pois o conflito lhes dava força. Eram centros de forças vitais acumulativas que no combate iam crescendo em força, como uma estrela eclodindo; eram sistemas estelares tardios em plena transformação.
Haviam adquirido todas as sutilezas da sensibilidade, também suas ilusões e exageros, os impulsos artísticos religiosos, as idiossincrasia românticas do século XIII, a aristocracia da vontade do século XVII, que por mais fragmentada que fosse, os mantia em nada continuar querendo; tinham a força do pessimismo trágico do século XIX e a anarquia do século XX - por isso sofriam de uma enorme incapacidade por não harmonizarem-se ao saber de seu tempo, pois eram múltiplos de alma, sabiam-se cientes do mundo em que viviam, desconfiavam de tudo que fosse inteiro e reto, o querer ser um, verdadeiro, para eles era uma comédia digna de riso, o verdadeiro para eles estava nos sentidos. Tinham seu próprio saber em conflito com o saber do mundo. Era depositado nestes corpos uma luta sem trégua, como se num cérebro guerreasse a humanidade em antagonismo. Tinham apenas uma pista sem cheiro, sem pegadas, sem evidências, sem motivos, uma suspeita em semente de que tudo que viviam era uma mentira do mundo; nascia neles o que chamamos hoje de "impulso para o profundo"; não sabiam para quê viviam nem para onde se guiavam, pareciam andarilhos, sucumbiam neles a alma, a individualidade. Incertos cavucavam para dentro de si, farejando uma verdade que os quebrasse inteiro, e do caos do Pensamento, talvez dessem luz a um novo ser, para além de bem e mal. Era mister que queriam sentir d'outra forma, que sentiam a necessidade de ir além de si mesmos para ver o que encontravam. Eram os buscadores do Eu-prório. Para isso, sentiam que tinham de perecer. Estavam fora de rota - o cardume descia o rio e eles subiam pra nascente.
O Homem tinha de morrer para viver, e todos estavam cultivando-o como uma planta sagrada, embaraçados no que sentiam. A questão era sobreviver à terrível depressão num mundo onde a mesma era justificativa como sintoma, como efeito, e não faltavam paliativos, ao passo que o esgotamento era já uma consequência da falha no sistema inteiro. E disso eles desconfiavam...