DONA ZOÉ
®Lílian Maial

 

 

Passei a infância mudando muito de apartamento. Meus pais não tinham posses, então, alugavam a moradia que o dinheiro permitisse. Naquela época, não havia lei de inquilinato, daí o “senhorio” podia pedir o apartamento a hora que quisesse e os inquilinos deveriam sair em menos de um mês. Era uma correria. 
Minha memória ficou mais densa lá pelos 9 anos de idade, ocasião em que nos mudamos para um apartamento bem no burburinho da Praça Saens Peña, na Tijuca, que ficava ao lado do saudoso Cinema Olinda, que era useiro e vezeiro em projetar filmes de terror ou de faroeste. Eu morava no bloco dos fundos (o da frente era comercial), mas, mesmos assim, conseguia ouvir os gritos de horror das sessões já em noite avançada. Era meio apavorante para quem não soubesse que era tudo mentira de filme.
Nesse prédio, eu morava no 6º andar e me recordo das brincadeiras com a melhor amiga – Elizabeth – no salão do playground, e da Rosa Maria, na cobertura, apartamento chique, mas que a mãe dela raras vezes convidava a entrar, certamente com receio da bagunça de criança alheia. Brincávamos no terraço. Era uma época gostosa na mentalidade infantil, embora tantas atrocidades acontecessem a pessoas de carne e osso como eu, que apenas pensavam diferente e queriam a liberdade. Criança não entende nada disso e vive em seu mundinho cor-de-rosa.
Pois bem, nesse meu mundinho particular, existia uma senhora - a Dona Zoé Montenegro - que morava em outro andar, mas que era bastante conhecida das crianças de todo o prédio. Todo ano, no dia 27 de setembro, dia de comemoração de São Cosme e São Damião, os gêmeos médicos, ela abria as portas de seu apartamento, a da frente e a dos fundos, fazendo um circuito com mesa de doces que ela mesma preparava desde a véspera. A criança chegava na porta da frente, pegava um saquinho de papel com a imagem dos santinhos estampada no verso, entrava na sala, onde estava a enorme mesa de doces coloridos, e ia colocando um de cada. Tinha cocada branca, cocada preta, rosa, azul, amarela, verde (ela usava anilina comestível), tinha pé-de-moleque, cocozinho de rato, balas, bombons, maria-mole, doce de leite em barra e pirulitos. Com o saquinho cheio, a criança saía pelos fundos e ia embora, se fartar na escadaria ou no pátio do prédio, ou em casa.  Virava e mexia, uma criança voltava para a fila (esta que vos fala inclusive), com a desculpa de pegar saquinho para a irmã ou irmão, que também estava na fila, mas D. Zoé não sabia. 
Dona Zoé gostava de conversar e contar as histórias de seu falecido marido, o Comandante Montenegro, da Marinha do Brasil. Eram viagens para os mais diversos destinos do mundo, com todas as minúcias possíveis. A criançada se amontoava ao redor do sofá onde ela se acomodava e ficava ouvindo as histórias e, quase sempre, comendo alguma delícia, como um bolo ou doce caseiro. Todas as vezes tinha gosto de alegria na casa da D. Zoé, que morava sozinha e não tinha filhos.
Tempos depois, ela veio a falecer. Nunca mais o dia de São Cosme e São Damião teve a mesma graça e o mesmo sabor, mas a data ficou gravada em minha memória, como o dia mais alegre (e gostoso) do ano. Até hoje penso naquelas cocadas coloridas e nos doces olhos da querida D. Zoé Montenegro. Como é bom ter o carinho de pessoas assim, que cumprem suas promessas juntando pitadas de afeto aos doces ofertados!

 

 

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