Ficções Heurísticas: Anotações de um extemporâneo I
...o século XXI sofria de uma hipertrofia dos nervos cerebrais, já fisiologicamente condicionados aos hábitos antigos de pulsão e repulsão, viviam em função da memória do prazer, se esquivando do desprazer da ação que os encontrava inevitavelmente no movimento contrário - a repulsão, onde, de novo, guiados pelo onirismo das imagens prazerosas agiam criando o mesmo movimento que os encarcerava como uma galinha em torno de um circulo de sofrimento. Moviam-se por imagens, impulsionados e incapazes de frear um estímulo tinham de programar suas vidas orientados pela lembrança, que chamavam de passado.
Assim, a vida seguia sem o aspecto misterioso que existe hoje, tudo era explicado, conhecido segundo o pensamento, às imagens. Inventavam todos os tipos de teorias para explicar as coisas. Havia uma gula por conhecimento, em querer conhecer por repulsa ao desconhecido e seu caráter imprevisível. Era inevitável que um dia se cansariam...
O tempo dividido em três partes ainda existia, era como uma bússola na cabeça; a constante narrativa de suas histórias - o monólogo silencioso - delineava as margens do que entendiam pela palavra 'tempo'. Cada ação era medida pelo teor das lembranças boas e ruins. Bem e mal ainda era a esfera mais alta a que podiam prestar auxílio para agir. Na verdade, ninguém sabia o que fazer com a vida, a liberdade era tanta que para evitar uma anarquia universal seguiam uns aos outros.
Aparentemente era um tempo que a preguiça de pensar fazia as pessoas dizerem coisas ridiculas, como: "o que ganho com isso?" O ganho, o obter coisas, poder, passando desde o conhecimento ao sentimentos e bens materiais, dependendo do tipo de indivíduo, era o que tinham em comum, - e por isso mesmo - o igual era a única realidade que conheciam, a mais pura verdade para eles. Pareciam animais de rebanho: o número maior de casos semelhantes era o critério para o que era verdadeiro. O pensamento daquela época estava dormindo e mecanicamente preparava os dois seguintes séculos que estavam por vir.
Que espécie estranha! Como podiam confundir vida com uma imagem do pensamento! Era como estar dormindo acordado, a única coisa que conheciam era aquilo que pensavam; não havia outra forma de agir para eles, de sentir, o pensar e a vida estavam separados pelo pensamento como identidade. Não sabiam que há um nível de percepção mais apurado, onde a ação não é projetada, seguida de uma imagem. Ela acontece instintivamente, de momento a momento. O que em nós move é a vida em seu conjunto, a ordem cosmológica. Agimos pela necessidade do Todo. E isto estava longe de compreenderem, pois não havia ordem, estavam todos indolentes e inquietos, inseguros no coração, não havia cosmo (ordem) neles, queriam apenas pagar contas, comprar coisas, sobreviver, ter satisfação - inda mais quando pensavam na morte, ou seja, a imagem que dela fizeram, aí que ansiavam pela satisfação permanente. Até o nome (morte) causava medo em alguns, salvo outros desesperados que iam direto bater à sua porta, prenhes de futuro e passado - imagens: romantismo onírico.
O sistema psicológico inteiro estava danificado, e o que mantinha a disfunção era a ansiosa ordem de pulsar e repulsar...