UMA VIAGEM
Aquela viagem de ônibus, mais de dois mil quilômetros, foi cansativa, porém marcante em minha memória.
Eu tinha 10 anos e viajava com minha mãe e meus dois irmãos mais novos. O caçula era o Walter, tinha uns 5 anos. Eu o chamava de Tím, porque, noutra viagem, pela empresa Itapemirim, eu o zoava com o bordão “Waltím, itapelimim”, com "L", conforme ele pronunciava. Eu zoava, ele se irritava. No final ficou só o Tím. Dizem que os apelidos pegam quando o apelidado se irrita, mas não é verdade, pois a minha irmã Lucimary também recebeu um apelido (Lurrimén, depois ficou Rimén) e ela nunca se zangou com isso. Ela tinha 9 anos.
Na agência da empresa Taguatur, no Núcleo Bandeirante, o relógio marcava 19:30 horas quando a viagem teve início com destino a Parnaíba, para encontrar o restante da família. Não tem como descrever nossa alegria viajando de ônibus. Havia outras crianças. O deslocamento rasgou a noite e as matas pelas artérias do sertão, de Brasília ao nordeste: viagem longa e penosa, alguns trechos pavimentados, outros não; estradas precárias!
Em cada parada, uma emoção diferente: paisagens, brincadeiras, lanches. Mamãe, como outras mães, levava a nossa refeição, com era costume de famílias que faziam longas viagens de ônibus. Também não era frequente haver restaurantes confiáveis naquelas beiras-de-estrada do sertão nordestino.
A nossa comida, piquenique para nós, era o que continha numa panela grande, de alumínio, cujo preparado minha mãe chamava de "frito", uma mistura de galinha caipira com farofa. A panela era envolta num pano de prato que servia de mesa. Havia outras panelas com outros ingredientes: arroz, cuscuz, carne seca. As famílias partilhavam alimentos entre si. Os pobres são muito generosos!
A cada viagem, emoção e iguarias diferentes. Tudo aquilo era gostoso demais!
A viagem transcorria e o motorista corria. Às vezes minha mãe gritava ao motorista, o Sr. Davi, para que ele dirigisse mais devagar, pois "não estava levando gado, tinha crianças no ônibus". Ele, desdenhando, sorria e respondia: - “Temos que chegar, dona Maria, e a estrada é longa!” e a minha mãe não se dava por vencida: “- É melhor chegar tarde, mas chegar, né, Seu Davi?”
Não adiantava, ele continuava correndo, e tanto ele corria, quanto os meninos pelo corredor; elétricos, eles não conseguiam ficar sentados. As mães cuidavam e ralhavam, mas quem é que pode com criança? E alguém dizia: “- Menino e jumento não tem regulamento!”
A certa altura, algo insperado aconteceu.
Num dos poucos pontos onde o asfalto era bom, daquela longa estrada pela Bahia, numa descida com abismos de ambos os lados, o ônibus, em velocidade, quebrou a barra da direção e o freio não foi suficiente para evitar o acidente. Acho mesmo que Deus olhou por nós e decidiu que não houvesse nenhuma vítima fatal. Foi um milagre!
O motorista, na esquiva, olvidou da ajuda divina e, com ar de defesa, atribuiu a si a perícia da manobra que evitou que o veículo desbancasse naquele precipício; tinha uns 15 metros de altura. Não caiu; o ônibus ficou com a parte da frente dependurada; nós, os que não conseguiram ficar nas cadeiras (naquele tempo não tinha cinto de segurança!), na inércia, juntamos amontoados na parte da frente. Se o ônibus tivesse caído a crônica da polícia rodoviária seria outra, pois o ônibus estava lotado, na maioria mulheres e crianças. Por Deus, e pela perícia do Sr. Davi, o pior não aconteceu.
Como disse, o acidente me marcou profundamente, menos pelo impacto físico, mais pelo dano emocional. Às vezes me pergunto porque sou tão ansioso!
Pois bem, viajando há mais de vinte e quatro horas, o acidente ocorreu por volta das 23:00 horas. Muitos estavam dormindo; depois do estrondoso barulho da batida no barranco, só se ouviam vozes de mães que procuravam seus filhos; naquele pânico geral, minha mãe gritou, eu respondi: “- estou bem, mãe, fique tranquila!”. Sem muito poder se mexer, as mães se ocuparam em procurar seus filhos, encontrando-os à frente do ônibus; o bico da frente ficou lançado, de ponta-cabeça, seguro em terra firme apenas pela parte de trás. A estrutura do veículo não balançava.
Graças a Deus e aos santos anjos da guarda todos estavam bem, apenas com leves escoriações.
Passamos o resto da noite quietos dentro do ônibus, dado ao perigo de algum movimento, na estrutura pendida. Quando amanheceu, o socorro já havia chegado e uma corda amarrada ao corpo de cada um foi a saída possível e segura pela última janela, ao fundo, do lado esquerdo. As crianças foram as primeiras no resgate, seguida dos velhos, senhoras e por último os homens. Todos salvos!
Dia seguinte, a viagem continuou noutro ônibus e novos motoristas, por mais mil quilômetros. Tial, Sr. Davi!
Com uma viagem mais lenta e segura, conseguimos chegar em Teresina, por volta das 1:30 horas, madrugada do terceiro dia. Na porta da agência da empresa, na praça Saraiva, o ônibus acostou. Não havia estação rodoviária na cidade.
Minha mãe, carregando malas e filhos, procurou a empresa Marimbá, do outro lado da praça, que continuaria a viagem até o nosso destino. Verificou que a próxima partida para Parnaíba se daria às 6:00 horas. O que fazer, onde passar a noite com crianças e tantas malas?
Minha mãe pôs-se, então, a procurar abrigo e hospedagem, não logrando êxito, pois nenhuma pousada lhe era compatível ao bolso. Então, ela improvisou: aproximou-se de um banco da praça, abriu as malas, retirou roupas e lençóis e alguns poucos cobertores. Adequou um espaço pra gente dormir, com o conforto possível àquelas circunstâncias. Ali ela fez um projeto de quarto, colocando as malas em volta do banco e, embaixo dele, alguns panos que serviram de berço para o filho mais novo, o Tím; as malas tentaram bloquear a brisa da madrugada, mas… deixa pra lá. Ela tentou!
Todos sabem da fama de Teresina, quanto ao calor que existe por lá. É verdade. A cidade, planejada, foi construída entre dois rios, o Rio Parnaíba e o Rio Poti. A incidência do sol durante o dia causa um verdadeiro efeito estufa na cidade, cobrindo-a com um mormaço de ar parado, úmido e quente, tornando a cidade uma das mais quentes do Brasil. O calor que ocorre é durante o dia! Na madrugada é outra história! Nada sei da amplitude térmica da cidade, mas, nessa noite, eu nunca senti tanto frio em toda a minha vida!
Acho que tirando o Walter que dormiu bem (eu acho!), eu e Rimém ficamos grudados no corpo da mamãe, que não piscou o olho e, feito coruja, olhava ao redor para inibir possíveis atentados ao ninho e às crias. Muito embora ela não obtivesse êxito em nos proteger, a contento, do frio da rua, ela trasmutou o lugar no mais quentinho do mundo que um filho poderia ter, pois nos abraçava com tanto amor, carinho, proteção e aconchego que o tempo nem demorou passar; acho que dormimos grudados ao corpo da mamãe. Confesso, não é contradição: essa noite, eu nunca senti tanto calor em toda a minha vida!
Dia seguinte: chegamos em Parnaíba por volta do meio-dia; papai nos esperava numa agência que funcionava na Praça do Hotel Carneiro. Naquela época ainda não havia a estação rodoviária.
A alegria do papai em nos acolher, após aquela longa viagem de quase três dias, contrastou com os olhos fundos de mamãe, que não dormia desde o acidente. Meu pai perguntou: "- Fizeram boa viagem?" Minha mãe entendeu que era uma pergunta retórica, e disse: “- Meu velho, me dê mais dinheiro nas próximas viagens. Estou morrendo de sono!".
Crédito da Imagem:
http://classicosguerininet.blogspot.com/2011/06/busologia-historia-dos-onibus-parte-3.html