A costura do livro

Não consigo achar o ponto exato em que eu fui empurrado, até pouco a pouco ganhar tração, cair de inércia. E esse é o espaço que eu aperto entre uma sentença e outra pra dizer que tudo tem ido mal, mas com momentos de ir bem. Será que se acharmos a estória formadora de nós, é possível rasgar as páginas do livro, repor com outras no lugar?

Tava pensando sobre isso, e Clarice diz que é bobeira minha. Não disse pra mim, exatamente pra mim, não. Mas é mesmo como se fosse. Falou que pra ela, não existiu só apenas um livro da vida, um que ela leu e nomeou de pronto como "O" preferido, pelo contrário. Ela teve várias vidas, e em cada uma, um livro diferente. Acho que vou fazer assim também. Uma coisa por vez.

Aliás, um parêntese, sempre achei curioso isso da manufatura do livro. Abria-o pelo meio assim, qualquer um, pelo miolo, e ficava olhando a costura, a linha que unia uma página e outra. Meu medo maior era que, por acaso, aquela linha desquissese por algum motivo. Deixasse de querer unir as mesmas palavras e fugisse pra ser sei lá, um fiapo de mundo, um bordado de uma vó.

Mas nunca aconteceu não, nunquinha. Era só medo bobo de criança. Só medo.

Eu nem sei sobre o que eu ia escrever, tava pronto pra não escrever um parágrafo biográfico sequer, ia narrar uma coisinha cotidiana, que nada tivesse a ver comigo. Impossível. Até na mentira tem verdade, até na verdade tem mentira, e pior, quando se escreve do jeito biográfico, ou quando se vive do jeito biográfico,se tem ainda o risco de ser como o elástico.

O elástico.

Esse que, esticado por demais, já não consegue voltar de novo pro início, mesmo que a tensão acabe. Que afoga o tesão da primeira olhada, da primeira conversa, onde o roux não engrossa e o sal se perde. Aquilo em que a linha e o linho se vão, desatam.

"A linha e o linho." Todos esses parágrafos apareceram depois dessa música. De Gil, (eu acho que é dele, ao menos ele canta.)

"É a sua vida que eu quero bordar na minha

Como se eu fosse o pano e você fosse a linha"

(...)

E fosse aparecendo aos poucos nosso amor

Os nossos sentimentos loucos, nosso amor

O zig-zag do tormento, as cores da alegria

A curva generosa da compreensão

Formando a pétala da rosa, da paixão

Não é lindo? Assim como a costura do livro, ou o elástico que se tensiona, ele me fala sobre como estar com outro, (com qualquer outro eu acho, não só o amoroso), é algo que se revela em cada curva, em cada nó, em cada entrelace. Na toalha de mesa, na colcha da cama, e agora parafraseando Mia Couto, nas coisas pequenas e desvalidas, que só tem brilho porque a gente empresta.

Não sei, não sei se nada disso faz ou fez sentido. Não sei nem como terminar isso aqui, dar um final, mas acho que é isso, vou só... terminar terminando. Como tem que ser.

Sem dar tchau.