MEMÓRIAS DE ESCRITOR

Quando ainda não sabia rezar, já escrevia. Falar com quem, num mundo em que ninguém via aqueles olhinhos negros no canto da sala? Tinha vontade de conversar, de perguntar por que tanta ausência... se seria sempre daquele jeito, se ser família era tão somente se encontrar para o jantar. Quando teriam tempo de observar que seus pêlos cresciam, que sua voz já não era a mesma e que à s vezes desaparecia, sem que ninguém desse falta?

Nas entrelinhas estava o que tinha medo de dizer. O desejo ardente de crescer, de ser tão mau quanto eles, de não se importar se o brinquedo da criança quebrou, que os fantasmas se escondem debaixo da cama na madrugada ou que tem prova amanhã na escola. Crescer, tornar-se grande, era o espetáculo. Não ter que esconder-se mais nas entrelinhas, publicar o que sente sem medo. Com o tempo percebe-se que escrever é mais que desagalhar-se, é respirar, viver. Palavras sempre nutririam as faltas, os desassossegos, as aspirações...

Não tinha muito o que fazer, a não ser esperar e esperar. Sentia que por vezes travava-se uma batalha em seu interior. Protegia a criança e incitava o homem, adormecia na sonolência do tempo e mergulhava nas experiências, nas dores do existir. Fatalmente um dia os dois se encontrariam e o mais forte venceria...

Cláudia Sabadini
Enviado por Cláudia Sabadini em 29/11/2005
Código do texto: T78341