Quatá: De bem com a vida.
QUATÁ : “De bem com a vida”.
As pessoas labutam diariamente em busca da vida perfeita, do corpo perfeito, da saúde perfeita, da família perfeita e de tudo mais que representa o ápice na sociedade.
O doutor Gileade era a síntese do ser humano invejável. Aos 57 anos de idade, desembargador em Brasília, gozava do auge da saúde física e mental. Poderia ter se aposentado, mas preferiu continuar trabalhando para manter o status do cargo e os benefícios complementares que faziam sua remuneração da ativa saltar às alturas.
Sua família era indelével: a esposa e companheira de mais de 30 anos, e um casal de filhos. A filha mais velha era promotora de justiça e o caçula, médico geriatra casado com uma endocrinologista. Três netas complementavam a continuidade da geração.
A típica família de propaganda de margarina. Residência em condomínio de luxo, carros importados, férias nos lugares paradisíacos, refeições em restaurantes com estrela “Michelin”.
Num domingo ensolarado de outono, Gileade levanta-se da cama e observa sua esposa que continua repousando. Vai à cozinha preparar o café e vinte minutos após compor a mesa, retorna ao quarto para avisar que o “breakfast” estava servido.
Chama e ela não responde. Toca em seu ombro e sente que o corpo está gélido e sem vida.
Desesperado, aciona o atendimento médico de urgência. Era tarde demais. Ela morreu dormindo, ou como diria um vereador brasileiro que virou meme na internet “dormiu e quando acordou já estava morta”.
Foi um dos velórios mais concorridos da capital federal. A nata da sociedade se fazia presente. Àquela altura, já havia uma meia dúzia de mulheres despertando interesse pelo novel viúvo - desde mocinhas na casa dos 25 anos, balzaquianas e até uma prima da falecida que já rompera o marco da terceira idade.
Casar-se com o desembargador era como ganhar na loteria; garantia de vida tranquila, confortável e de glamour social.
Nos dois primeiros dias após o sepultamento, houve a companhia dos filhos e netas; passado isso, cada qual seguiu seus passos, mantendo apenas o contato por aplicativos de mensagens.
No final do mês, ele teria que tomar uma decisão difícil. Estava prestes a concluir um curso de pós-doutorado em direito público pela Universidade de Salamanca; as passagens já estavam compradas em nome dele e da esposa. Seguir os planos originais ou desistir da viagem ? Era a dúvida que lhe martelava o cérebro.
Mesmo a contragosto, tomou o avião até Madri. Pernoitou no hotel que a esposa tinha reservado, no bairro Chamberí. Na manhã seguinte, foi na locadora buscar o carro, conforme previamente programado.
No estrada rumo à Salamanca, tinha a intenção de almoçar em Ávila. Restando menos de 40 quilômetros para chegar ao restaurante pretendido, o viajante não percebeu e passou sobre um objeto metálico caído sobre a pista.
Estourou o pneu e quase capotou o veículo. Estanque no acostamento, foi em busca de socorro num sítio à margem da estrada.
O morador idoso lhe prestou auxílio e o levou para sua casa. Gileade chorava sem parar, como uma criança perdida. Seu choro não tinha uma explicação certa: era pelo acidente do carro, pela perda da esposa, pela dúvida em continuar o pós-doutorado, pela falta de rumo na vida, pelo medo de cair em depressão ...
O espanhol era Alfredo, que morava naquela pequena propriedade com o seu filho, este tinha um certo grau de deficiência mental. A granja fora herdada dos avós, transferida aos seus pais e seguiu a linha sucessória.
A casa feita de pedras era centenária. Após percorrer o mundo, Alfredo decidiu voltar às origens e viver no estilo minimalista sob a tranquilidade rural. Utilizava apenas o necessário para viver bem. Tinha uma camionete na garagem, mas transitava com uma bicicleta com a qual se deslocava até o povoado de “Ojos-Albos” para comprar mantimentos e visitar os amigos. Fazia questão de ajudar os necessitados.
Parece que os astros convergiram naquele momento. Um desembargador que estava perdido e precisando de ajuda encontra um altruísta disposto a lhe acolher.
Gileade desistiu do curso e ficou ali por mais de uma semana. Trabalhava na terra e visitava o vilarejo; às vezes a pé, e em outras vezes de bicicleta.
No retorno ao Brasil, entendeu o propósito da viagem e viu que Alfredo fora um anjo colocado em sua vida para lhe mostrar o caminho da felicidade.
Pediu aposentadoria e reuniu-se com a família. Explicou que precisava de uma nova razão para viver.
Dividiu o patrimônio em cinco cotas e transferiu cada uma para filhos e netas. Reservou para si apenas o dinheiro de um dos carros, que foi vendido, e de um investimento que possuía em títulos do Tesouro Nacional. Nem os móveis e utensílios da casa lhe acompanhariam na nova jornada.
Comprou um carro básico com seis anos de uso, colocou nele algumas roupas e objetos pessoais e tomou rumo ignorado.
Transformou-se numa espécie de andarilho, mas com algum tipo de conforto.
Tirou a barba que era sua marca registrada e apagou todos os registros em redes sociais. Em princípio, sonhava em aportar em alguma cidadezinha no estado de Minas Gerais.
Andar sem rumo pelas estradas tinha uma grande vantagem: podia se perder à vontade porque vagava sem destino. Quando sentia fome, parava em algum ponto simples na beira do caminho e ali mesmo lanchava e às vezes tirava uma sesta (à sombra de alguma árvore).
Já havia atravessado o estado das Minas Gerais e rasgava a região da Alta Paulista em direção ao sul, quando avistou uma senhora humilde com uma criança de colo pedindo carona às margens da rodovia SP-284. Seu projeto de vida era ajudar as pessoas e ali havia alguém necessitado.
Parou seu Renault Clio e abaixou o vidro do passageiro. A mulher pediu carona dizendo que a filha bebê estava queimando de febre e precisava ser levada a um posto de saúde pública.
O local mais próximo era a pequena cidade de QUATÁ, ainda no estado de São Paulo. Ele deixou a mãe e a criança na porta do posto de saúde e deu-lhe a quantia de duzentos reais em dinheiro - suficientes para a compra de remédios e para pagar um táxi de retorno.
Já passava das 16 horas quando optou por hospedar-se num hotel popular no centro da cidade. Guardou os pertences no quarto e foi sentar-se na praça do outro lado da rua. As pessoas lhe cumprimentavam, mesmo sem conhecê-lo, desejando boa tarde e perguntando como ele estava.
Parecia ter encontrado o local ideal, para manter o anonimato da vida e buscar uma rotina simples.
Conheceu seres diversos, inclusive um corretor informal (desses que atuam sem registro no órgão oficial) e que coincidentemente, lhe perguntou se queria comprar uma casa naquela cidade. Gileade entendeu aquilo como uma mensagem divina.
Foi conhecer o imóvel que ficava a poucas quadras dali (aliás, tudo naquela cidade ficava a poucas quadras). Era uma casa de alvenaria construída na década de 1950, que não recebia pintura e reforma há pelo menos uns trinta anos. Ficava a cerca de 200 metros da praça central, na Avenida Comendador José Giorgi, numa baixada.
Um terço do dinheiro que reservou para si, foi suficiente para comprar, reformar e mobiliar o imóvel.
Comprou uma bicicleta e incorporou-se à rotina dos moradores. O Clio ficava escondido na garagem fechada por duas enormes portas com folhas de madeira garapeira.
Todas as manhãs, despertava ao som de um galo índio criado nos arredores, e ia pedalando rumo à padaria. Comprava uma dezena de pães (franceses) e pedia para encher sua caneca plástica com café. Atravessava a rua e sentava-se calmamente no banco da praça, onde tomava o café e comia um dos pães. Outros dois ou três, ele jogava de forma esfarelada sobre o gramado, para atrair e alimentar os pássaros. Todo esse ritual demorava quase uma hora, e ao mesmo tempo, meditava e tomava vitamina D na forma orginal (quando não chovia).
Os pães que sobravam, ele mantinha ensacados e pedalava até o bairro mais pobre da cidade, até encontrar um transeunte necessitado que os aceitasse receber.
Arrumou uma diarista que limpava a casa e lavava suas roupas uma vez por semana. Adquiriu um computador onde passou a escrever e a comunicar-se com os familiares em dias alternados. Aboliu o uso do telefone e do relógio.
Dormia ao aproximar do sono, comia quando ao flertar da fome.
Passou a frequentar o grupo de oração da Renovação Carismática Católica, chegando de bicicleta e com roupas simples. Ninguém imaginaria que aquele senhor anônimo era alguém tão importante na capital da república.
Quando alguém perguntava o nome, de pronto, ele respondia:
- José.
A identificação masculina mais comunal da população brasileira ajudaria a esconder sua identidade.
Virou um observador social e estudava atentamente o comportamento daqueles habitantes. Usou esses conhecimentos para escrever dois livros.
Sempre que alguém pedia oração no grupo da igreja, ele ouvia atentamente e buscava uma forma de ajudar, sem ser identificado.
Em um dos cultos, uma senhora clamava desesperadamente por sua mãe, que precisava de uma consulta e de exames cardiológicos; dizia que se fosse esperar pelo poder público, iria demorar vários meses. Gileade (ou José) pegou seu veículo na manhã seguinte e se deslocou até à cidade de Marília, onde encontrou uma clínica de cardiologia. Pagou o equivalente a uma consulta e a um pacote de exames e exigiu que lhe entregassem um recibo na forma de “vale procedimento”. Retornou à comunidade e entregou ao padre, pedindo a ele que procurasse àquela senhora que havia pedido oração e lhe desse os encaminhamentos.
Sentia-se bem em confessar ao padre, e este sabia da sua verdadeira identidade. O líder religioso passou a abençoar pessoas através dele.
Foi assim que o menino Gabriel recebeu uma bicicleta nova em sua residência; dona Margarida ganhou uma geladeira de duas portas e seu Mário que estava desempregado viu suas contas de água e de luz serem quitadas. Outras dezenas e dezenas de moradores tiveram seus problemas saneados.
O inconveniente das cidades pequenas é que a fofoca se espande na velocidade da luz. Manter a identidade secreta de super-herói, estava ficando cada dia mais difícil.
Todos queriam saber onde o padre arrumava tanto dinheiro para presentear a comunidade. Houve quem o caluniasse, dizendo que ele estava encobrindo algum chefão do crime organizado.
Um vereador mais esperto, mandou circular a informação de que era ele quem atendia os pleitos dos moradores. Pagou para um locutor de rádio fazer a propaganda de forma transversa. O radialista dizia que sabia que era um vereador quem pagava (cujo apelido era soletrado vagarosa e repetidamente); completava o factoide, aduzindo que o parlamentar jamais admitiria isso em público, porque, segundo a narrativa, o propósito dele era ajudar anonimamente, sem qualquer interesse eleitoral.
A notícia extrapolou fronteiras. Começaram a chegar caravanas de pessoas na cidade, com bilhetes de pedidos endereçados ao padre. Multiplicaram o número de exploradores.
Certo dia, Gileade soube que dona Joana tinha sido abandonada pelo marido e com duas crianças para cuidar, sem ter aonde morar. Foi ao cartório, fez um termo de doação da casa para ela e lhe entregou as chaves com os móveis dentro.
Na madrugada seguinte, Gileade sumiu da cidade com seu Clio, suas roupas e seu computador. Ninguém sabe de seu paradeiro.
O padre não revela o mistério, por conta da obrigação do sigilo em confissão. Os eleitores do vereador, reclamam que ele parou de dar presentes. Dona Joana, insiste em dizer que o anjo que habitou na cidade, era o proprietário anterior da casa onde mora.
Coincidentemente, o contraventor do jogo do bicho, conhecido como Bento Amaia, foi preso naquela semana em que Gileade foi embora. Parte significativa da população credita a ele os benefícios entregues de forma anônima, e dizem que se a polícia e a justiça não tivessem agido, o povo estaria muito mais feliz, atendido em suas necessidades.
Ao sair da cadeia, Bento foi assassinado na porta de sua chácara, a mando de um banqueiro rival. O local onde caiu alvejado, virou ponto de romaria com a colocação de flores e velas acesas.
O dono da barbearia, localizada próxima da igreja matriz, insiste em dizer que seu filho foi curado de gagueira, após fazer uma promessa a Bento Amaia. Esse milagre já rendeu pauta na rádio, sites de notícias e no jornal impresso da região.
O padre, coitado, tem que assistir a tudo sem poder dizer a verdade. O sacramento o impede revelar a história.
Ao povo: os seus heróis imaginários.