Ainda vive aquele jovem de outrora
Hoje arrasta com certo barulho os chinelos sobre tacos desbotados, escuta-se roncando mesmo acordado, traz lembranças dos aniversários, casamentos, celebrações que aconteceram ali. E também dos lamentos, quase sempre patrocinados pela morte repentinas, como a de sua esposa.
Seu nome é o mesmo, mas cansado da caminhada vai com muito custo carregando a canga do tempo. No amigo e velho espelho vê aquela imagem tenta reconhecer e convencer que é ele mesmo. Os dias passam!!! Quando se pega na leitura de um romance, ainda sonha chega até recordar de alguma passagem.
O quadro na parede já amarelado mostra o casal nos anos dourados, muitos planos eram traçados, e ele passava horas em sua companhia, e, vez ou outra, aproximar-se com a gentileza estampada no olhar, amansando tudo dentro dele: temores, mágoas, faltas. Nem mesmo quando a situação queria sair do controle ela acreditava naquele homem que escolhera para ser sua cara metade.
O tempo passou, a vida agora é outra pessoa a hospedar-se um espírito desenganado. Toca nas paredes em busca de amparo para evitar tombos. Às vezes, é tomado pela ideia de que ele não lhe pertencem, são mãos emprestadas. A textura da pele, prova concreta da passagem do tempo, que desaponta e tem que aceitar que envelhecerá.
Evitar tombos é tarefa cotidiano. Não querer se render a cartilha da natureza, tem que saber juntar os próprios cacos.
Muitas coisas o abandonaram, por isso aprecia olhar pela janelas e sentir a vibração do que lá fora é vivo, arrebatador. Não sabe mais decifrar certas coisas. Estão felizes ou com dores? Medo ou deslumbramento?
Pergunta-se, recuando diante da pronúncia das palavras: quantos tempos ainda terá estas pessoa ? Porque o tempo que ele vive agora não parece justo, apenas longo.
Escandaliza-se com legendas: carro ultrapassa em alta velocidade, bate em mureta e se afoga no mar azul. Preço do descafeinado triplica, seguindo as normas da numerologia. Uma tarde no shopping pode levar à falência se você aparecer lá no dia em que recebeu seu salário. Disputa acirrada pela última vaga no ônibus espacial: há sempre alguém querendo pagar mais.
O silêncio o acorda com seu hálito de novidade, então o acompanha, sem alterações ou rompantes, até que ele se pegue novamente de olhar vidrado na pele que parece papel amassado, de se rasgar mediante um leve atrito com a quina da pia.
Suas pálpebras obedecem ao peso da necessidade. Fecham-se, não importa se o seu desejo seja o de permanecer desperto, observador, curioso.
E se ele se perder e não saber voltar? Quem será que vai ressuscitar sua memória?
Então, o silêncio o coloca para dormir. E antes de cair nos braços da noite, ele canta uma velha canção que já não escuta mais. Mas insônia persiste........