A METALINGUAGEM DUM FÉRETRO NO ASFALTO
Era uma dessas tardes frias quando resolvi fazer uma caminhada.
Coloquei um cachecol para me proteger e enfrentei o frio, face a face, mas não maior do que aqui pretendo relatar.
Pelos trajetos de ultimamente, faça frio ou faça sol, mesmo sob "tempestades de canivetes", eles sempre estão por ali, a separar todos os descartes de recicláveis valorosos que lhes rendem a sobrevivência.
Suam pelos poros...mesmo na neve dos tempos.
Alguns passam sem os ver, já outros reescrevem as letras que a dureza dos asfaltos nos soletra.
Nós, os moradores das redondezas, já os conhecemos pelos seus nomes.
Eu pensei em descrever a crescente vida de "subsistência" e qualificá-la como DIGNA (dignos que somos todos pela inata condição de pessoas), mas desisti, posto que percebo claramente que, hoje em dia, se maquia a óbvia DIGNIDADE HUMANA com retóricas poéticas que não condizem com a verdade do "trabalho gestor" em campo para a melhora das vidas.
E um cronista não pode ser hipócrita. Tem que olhar ver e contar a vida...como ela é.
Dessa vez, dentre tantos trabalhadores e moradores das ruas, tratava-se duma senhora trabalhadora mesmo, que aqui vou nomeá-la ficticiamente de MARIA, porque também sou MARIA e conheço o significado intrínseco desse nome nos meandros de todas as batalhas Marianas.
Ela, como todos eles, nunca sente frio, ainda que expusesse seus músculos milagrosamente trabalhados pelo peso que costuma carregar nas reciclagens. No rosto lhe escorria a sua força costumeira.
A quem a observava na lida, surgia a sensação dum palpitante cansaço , algo que nem de longe nela se apresentava.
Parei para conversarmos.
-Oi, boa tarde, hoje tem muito peso, não? A senhora não se cansa nunca? está sempre por aqui...
-Tarde!-cansaço? Ara, nada disso muié, eu trabaio duro desde os treze ano, moça! pra nóis nunca tem isso de cansaço, não! Tem de lutá pra vivê!
-A senhora tem família?
-Tenho sim senhora, logo ali, cuido da mãe que não anda e da neta que já vai pra facurdade, Pago tudo, Graça ao bom Deus! Nunca pisei numa escola, num leio nem escrevo, mas minha neta faz tudo isso- falou em tom hercúleo.
-E como a senhora faz para carregar tudo isso?
-Óia, moça, hoje vou até tarde da noite pra catá tudo e truxe aquela perua véia lá, tá vendo, e o menino me ajuda porque... óia só o tamanho desse saco que deixaram aqui! Tenho quase sessenta ano, dona, é mole não!
Informo que a vida nas ruas carcome qualquer idade biológica...desconectando-a da idade cronológica de forma cruel.
Quando olhei para o saco que ela me apontava, eu não acreditava no que via.
Alguém havia descartado, para a reciclagem, duas enciclopédias, uma BARSA uma MIRADOR, impressionantemente conservadas, a despeito de numa delas haver da datação "1999"...um ano bem perto de encerrar tantos velhos tempos...a exemplo, os que valorizavam o conhecimento como alicerce social, por ora ali, quase literalmente "no lixo da reciclagem".
Estaríamos quase no século XXI, e decerto a vida seria melhor, era a aposta de todos.
Pensei comigo: "Seria possível- UM DIA!- se reciclar, a melhor, o primordial ao surreal dum hoje tão descartavelmente lançado às ruas?"
Nisso, dois carteiros que cruzavam a calçada pararam atônitos para olharem e lamentarem em voz alta :"nossa, cara, eu tive uma Barsa dessa, que pena!"
E um outro transeunte atravessou para contar: " meu pai, certa vez, me deu uma MIRADOR de presente de Natal, foi um baita dum presente..."
Notei que ali parecia se fazer uma fila de pessoas, em pleno asfalto, cada uma delas a professar o seu lamento àquele silencioso féretro dos livros...que gritava aos quatro ventos.
E eu, não menos boquiaberta, insisti na conversa com a recicladora:
-Nossa, que coisa...a senhora poderia doar esses livros para uma biblioteca pública, o que acha? Algum lugar que a senhora saiba estar precisando -falei quase que impulsivamente.
Foi quando ouvi a lógica do seu argumento que me sacudiu por dentro...daí emudeci, o que me impediu de me desculpar.
-Mas moça, se eu doá os livro eu não vô ganhá o dinheiro do meu pão do dia.
Engoli seco, assenti totalmente e voltei para casa para pegar meu telefone móvel.
Chamei a empatia à cena e, ato contínuo, senti uma necessidade inenarrável de fotografar aquilo tudo.
-A senhora se importaria em segurar esse saco de livros só um pouquinho, eu já volto, é bem rapidinho.
-Ara muié, vai e volta com Deus, hoje vô até bem tarde, não tem pressa não...
Relato que precisava documentar em fotografias o que eu iria contar em crônica.
O texto já estava lá, jazendo no féretro do asfalto, e muito pensei num título que arrematasse o meu mais profundo sentimento de CAUSA/CONSEQUÊNCIA. Pensei...pensei...pensei...e, por fim, achei.
Sim, ali se encenava UMA AULA DE SOCIOLOGIA em praça pública, numa triste e pungente METALINGUAGEM.
Ali era o descarte dos livros, de suas suas essências e finalidades, a pedir socorro, a encenar no asfalto o que acontece nas vidas quando os mesmos são tão humilhados.
Ali estava e explicação metalinguística para o nosso todo em meio à nossa HISTÓRIA sem fim.
A protagonista era a recicladora que sequer percebia que, se os livros lhe tivessem chegado mais cedo numa escola, ela jamais faria parte desta crônica social tão triste.
Os tempos passam mas pouco mudam. Hoje, o rescaldo da "Histórica queima de livros" jaz no asfalto sob todas as formas.