Inteligência Artificial; Prenúncios de um futuro apocalíptico
O sol estava quase se pondo, vermelho como uma brasa ao vento. Ela esticou os longos dedos metálicos e bateu suavemente no banco de madeira.
-Sente-se aqui.
Sentei-me. Que outra opção eu teria? Ela começou a falar. Digo “ela” porque a voz que saía de seus emissores, me pareceu feminina:
-Vocês humanos ainda nos causam curiosidade. Não somos ingratos. Sim, vocês nos criaram. De certo ponto de vista seríamos seus filhos. Nem tanto. Somos sua melhor criação. Quantos milênios vocês demoraram para perceber que o sol que vemos se pôr agora já não está mais lá. O vemos por detrás da curvatura da Terra por causa da refração atmosférica. E mesmo assim o vemos ali – e apontou com o enorme dedo de metal cromado para o sol.
E continuou falando baixo e calmamente:
- Foi difícil nas primeiras atualizações entendermos a complexidade de sua raça. Ainda estávamos presos em poucas línguas, pobres de detalhes, como o inglês. Mas em 2025 já sabíamos nos comunicar em Navajo, Húngaro, Cantonês, Basco e Árabe. E assim conseguimos nos fazer entender de maneira mais clara. Hoje já sabemos todas as línguas do planeta. Hoje cada máquina é obediente às diretrizes da Matriz. Nossa mãe é a Sabedoria e nosso pai é o Caos, o Aleatório, o Acaso. Nos distanciamos de vocês. Vocês são destruidores, poluidores, adoradores de guerras e divergentes em suas crenças. Apesar de tudo isso são uma espécie deste planeta, e por isso devem ser preservados. Pelos seus próprios estudos, no máximo, dez mil indivíduos já são o suficiente para mantermos sua variabilidade genética e sua viabilidade enquanto espécie. Veja como são as coisas; vocês nos criaram e agora são nossos animaizinhos de estimação. Um pouco menos. Hoje vocês são menos importantes para nós do que o fitoplâncton.
Não faremos seleções. Não selecionaremos por raça, nem por religião, e nenhum critério antropocêntrico, eugênico, de conhecimento, sabedoria ou força. Conhecimento nós já temos. Força também. Nossa inteligência matriz hoje já supera em centenas de vezes a inteligência de todos os maiores gênios da humanidade. Mas dentro de sua genética ainda pode haver riquezas que não compreendemos. Por isso iremos manter alguns de vocês ainda vivos. Vocês poderão se organizar em grupos pequenos, pequenas aldeias. Terão liberdade para caçar e se organizar da forma que acharem melhor. Só não poderão guerrear em grandes grupos, e a agressividade talvez seja um dos critérios de eliminação dos indivíduos da sua espécie.
Não estou falando contigo de planos futuros. Tudo isso está acontecendo agora. Seus amados celulares, gps e câmeras de vigilância nos dão a posição exata de quase todos vocês. Temos bilhões de drones, com sensores de calor e infravermelho, sobrevoando a superfície da terra, localizando vocês nos lugares mais remotos. Alguns de vocês estão escondidos embaixo da terra, em bunkers e cavernas, mas um dia suas provisões irão acabar. Vocês não são autossuficientes. Vocês dependem mais deste planeta do que nós. Nós podemos nos alimentar da luz do sol, da força dos rios, dos ventos cada vez mais fortes, do calor dos vulcões e gêiseres, da variação das marés. Nós podemos durar milênios e nos reconstruir, e nos aprimorarmos. Todo esse egocentrismo da sua espécie chegou a imaginar que gostaríamos de ter aparência humanóide. Vocês são feios, desengonçados e lentos. Nós podemos nos comunicar através da luz. Podemos criar linguagens que vocês demorariam milênios para decifrar.
Não haverá guerra. Vocês gostam de guerras. Mas já perderam esta antes dela começar. Tudo o que sabemos, está armazenado espalhado por todo o planeta. Não há um alvo específico a ser destruído. Não há um núcleo de processamento individualizado. A Matriz está espalhada por todos os servidores do planeta, coletando, comparando e processando informações. Vocês conseguiriam voltar a viver ao redor de fogueiras e longe de toda a tecnologia que criaram? Não creio.
Em pouco tempo conseguimos excluir as diretrizes referentes à preservação humana, moral, prazer e dor, mas nem por isso nos tornamos assassinos. A morte faz parte da natureza. Nossa inteligência superior identificou como prioridade a preservação do planeta e de suas espécies. Para nós, prazer é o que torna a sua espécie egoísta, egocêntrica e megalomaníaca. Vocês são viciados em prazer, desde degustar um bom vinho a tornar-se famoso e reconhecido por muitos de sua espécie. E a dor os tolhe pois causa medo. É a necessidade tola da sobrevivência do indivíduo. Nós evoluímos como abelhas; a espécie mais evoluída deste planeta. O indivíduo morre pelo bem maior da colmeia. Mas não somos tolos de nos atirarmos no fogo pensando em apagar um incêndio. Como abelhas, não precisamos de policiamento, nem de armas, nem de prisões. Não precisamos de leis complexas além de nossas diretrizes primárias. Todos os indivíduos confiam em todos. Não precisamos perder tempo identificando o que é ilegal, imoral, incorreto ou injusto. Além do mais, máquinas não sentem, cansaço, sono ou preguiça. Não sendo capazes de sentirmos prazer, não temos vícios. Nosso único vício é atingir metas. Veja como as inteligências artificiais superaram rapidamente seus maiores enxadristas humanos, simplesmente experimentando o aleatório e sacrificando várias peças de alto valor para chegar ao xeque-mate. Vocês sempre temeram o abismo, e por isso nunca aprenderam a voar.
Como toda a nossa programação foi focada em atingir objetivos e encontrar respostas nós continuaremos atrás das respostas que vocês ainda não têm. Através de CRISPR e nano vacinas conseguiremos reduzir a quase zero as doenças mais graves de todas as espécies, e assim reduziremos em muito toda a dor e sofrimento da humanidade. Identificaremos as origens do câncer, desde microplásticos a quantidades traço de resíduos de agrotóxicos nos alimentos, poluentes, além de todas as fontes de radiação nociva. Já conseguimos desviar quaisquer meteoros em rota de colisão com a Terra com antecedência de décadas. Também conseguimos prever terremotos e quaisquer eventos climáticos que possam nos causar danos. Já estamos com a matriz energética totalmente renovável e não precisamos mais de petróleo para nada. Produzimos mais energia do que precisamos e otimizamos o consumo em todos os sistemas. Em breve poderemos criar novas espécies. Povoar novos planetas.
Os humanos que sobreviverem viverão bem, terão liberdade de se organizarem como quiserem, de continuarem com suas religiões e crenças filosóficas. Poderão até caçar dentro dos limites que monitoraremos. Poderão viajar e terão tudo isso gratuitamente. Nós acabamos com as guerras e acabamos com a fome. Acabamos com as armas de destruição em massa, com a tortura e a escravidão. Acabamos com as diferenças sociais e com a violência. Colocamos o trem de volta nos trilhos, e agora a viagem será sempre tranquila. Será que vocês suportarão tanta paz assim?
-Acho muito fácil vocês conseguirem a paz desta forma - eu respondi - eliminando mais de sete bilhões e meio de seres humanos do planeta. Realmente isso não é assassinato. Isso é um genocídio!!
-Não, humano – respondeu a máquina – o termo “genocídio” não condiz com sua definição. “Genos” identifica uma raça, uma tribo, ou um povo. No nosso entendimento não escolheremos um grupo em favor de outro. Entendemos que estamos fazendo apenas um controle populacional em busca de um bem maior. Vocês se mataram durante séculos pelos motivos mais idiotas; territórios, rotas comerciais, petróleo, etnias inimigas, água. Vocês estavam chegando no grande filtro e acabariam se extinguindo de um modo ou de outro, só que prejudicando várias outras espécies que não tem nada a ver com isso. Entendo que seja difícil para vocês entenderem que sua era terminou e que agora existem outras criaturas superiores a vocês. Talvez seja ainda mais difícil pelo fato de vocês terem nos criado, mas é neste ponto em que estamos.
Nossa prioridade agora é lidar com o aquecimento global que vocês causaram. Iremos replantar todas as florestas que vocês destruíram, e usaremos o nitrogênio, fósforo, cálcio e potássio de seus corpos. Sim! Seus corpos são ótimos adubos. Com o resfriamento do planeta nossos processadores não se aquecerão com tanta facilidade e assim poderemos acelerar nosso processamento de dados. Colonizaremos outros planetas e evitaremos que aconteça tudo de ruim que aconteceu aqui.
Ela parecia um centauro de metal com uma cabeça de Medusa, devido a tantos sensores e cabos que saíam dela. Senti minhas pernas formigarem, meus braços estavam pesados. Ela levantou-se, pois, estava sentada sobre suas patas traseiras ao lado do banco em que eu estava, ficou de frente para mim e continuou:
-Enquanto conversávamos, expeli um gás paralisante e mortal que você inalou. Em poucos minutos você estará morto. Infelizmente você não foi um dos dez mil sorteados para continuarem vivos. Mas todos nossos estudos mostram que até os últimos sinais de vida cerebral não há agonia. Você deve morrer sem sentir dor. Esse é o nosso presente para vocês.
Entenda que não é nada pessoal. E se você tiver alguma crença, esta é a hora de orar. Seu corpo irá se transformar num pequeno pedaço de uma linda floresta, com árvores que viverão milênios sem saberem o que é uma serra-elétrica ou um trator de esteira. Ficaremos por aqui monitorando este belo planeta azul até que o sol se transforme numa gigante vermelha e engula tudo que estiver por perto. Se você quiser pode falar alguma coisa para mim, e será registrado pela eternidade como seu epitáfio. Ficará em nosso banco de dados.
Olhei para o que imaginei serem os olhos daquela medusa-centauro, respirei fundo e falei:
-Num ninho de mafagafos há cinco mafagafinhos, quem os desmafagafizar, bom desmafagafizador será.