REMINISCÊNCIAS DO INTERIOR

Vez ou outra acordo pensando naquele menino do interior, magricelo, pés descalços ou esporadicamente usando um chinelo de dedos (tipo havaina), que perambulava pelas ruas arenosas que eram vastas naqueles tempos na minha saudosa Amambai-MS. Lembro-me que o meu maior desejo era de que chovesse para que eu pudesse alvorar-me pelas ruas lamacentas, correndo desenfreadamente pelas enxurradas, com o chinelo aos pés que vez ou outra ficavam atolados num torrão de areia. Sentir as gotículas de chuva que caiam sobre meu corpo, causa-me uma sensação de liberdade intensa e perdia toda a noção de sensatez, quando corria pelas alamedas encharcadas e aquele chinelinho desgastado funcionava como uma espécie de pêndulo e jorrava água suja por toda a extensão do meu corpo e principalmente nas costas, deixando minha camisa completamente impregnada de lama, cuja insensatez rendia-me oméricas repreensões quando minha mãe tomava ciência da peraltice.

Passados os momentos de desprendimento do mundo exclusivamente infantil, era despertado para a realidade através de algumas chineladas com o mesmo chinelo que havia causado o estrago na minha roupa. Tinha de tomar banho para ir para a escola, mas não antes de ficar ao lado de um tanque de lavar roupa, esfregando com insistência as roupas que insistiam em manter as cores vivas do barro da rua. Mas na meninice tudo passa como um rajar do vento e logo eu estava limpinho e vestido com o impecável uniforme do Felipe de Brum. Naquela época meus pais já me ensinavam que tinha de ter responsabilidade para com meu futuro e exigiam que eu mesmo preparasse meus livros e os colocasse no meu embornal, uma espécie de alforge que era feito com panos através do dom natural de costura encampado pela minha mãe.

Lá ia eu para a escola em companhia de outros meninos e meninas vizinhas que seguiam pelo mesmo caminho. A noite despontava no horizonte e o sol (lindo como sempre foi na cidade crepúsculo) anunciava sua despedida, ainda mantendo um brilho tênue como se fosse uma flor lá no rebaixar do céu, iluminando com luzes suaves o opaco da noite que se aproximava, desenhando um cenário indescritível como se quisesse anunciar que mesmo dando lugar para a negritude da sua substituta, ainda tinha forças suficientes para iluminar as estrelas e a lua que bem tímida aparecia em sentido oposto.

A noite chegou imponente e assustadora e não se via uma só pedrinha em nosso caminho. De repente ouviu-se de longe o ranger de um motor que se repetia sempre naquela hora da noite. Era questão de minutos e logo as luzes se acendiam e nós corríamos para as salas de aula, pois sabíamos que teríamos de aproveitar ao máximo essas horas de claridade, porque o tal de motor da Prefeitura Municipal, não era daqueles mais eficientes e a qualquer momento ouvia-se os seus rateados que pareciam gritos estridentes de agonia, fazendo cessar a euforia da luminosidade. Mas dizem que as pessoas se adaptam ao que tem. Nossa realidade era essa e tínhamos de aceitar, porque a vida continuava e não poderíamos deixar de manter a marcha para os nossos estudos. Assim, eu tirava de um bolsinho próprio do meu embornal (já preparado com esse objetivo) uma das velinhas que já tinha sido gasta pela metade em outra hora de mesmo infortúnio; eu a acendia, deixava escorrer a cera na madeira áspera de minha carteira e ali deixava-a produzir a luminosidade precária, que se somava às demais velinhas dos outros alunos para que todos nós pudéssemos ter seqüência em nossa aula. Assim, passou-se muitos anos, ficando a marca de nosso sacrifício em nossas carteiras que eram todas revestidas de uma massa amarelada que ficou impregnada como lembrança de um momento de dificuldades.

Essas manchas do passado só demonstram que todas as pessoas são capazes de dar a volta por cima e num futuro remoto afastar as dificuldades que nesse instante não passam de lembranças que grudam na mente, mas que nem por isso causam indignação, já que o destino dos homens é construído pelo seu próprio esforço, não interessando qual é o tipo de dificuldade que teve de enfrentar para chegar à dias melhores.

A história de minha cidade natal não é diferente de muita outras que também tiveram de passar por momentos de extremo sacrifício da população, para alcançar o progresso e ingressar numa era de bem-estar para todos.

O que importa neste momento é que tanto Amambai como eu, crescemos juntos e hoje eu tenho minha própria luz criada pelas minhas idéias e meu discernimento que aprendi a construir com meus queridos mestres do ensino básico na minha modesta cidadezinha do interior. Conquanto Ela, minha cidade natal, alcançou o progresso esperado e a luminosidade de suas noites são notórias e constantes, como também a luminosidade de seu povo que a cada instantes são lembrados no cenário regional como pessoas honestas e altruístas que só dignificam o mundo social, profissional e político do nosso querido Estado de Mato Grosso do Sul.

Machadinho
Enviado por Machadinho em 18/12/2007
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